História da Hanseníase

por Henrique Antônio Valadares Costa,

Grupo de Estudos em Arqueologia e Informa Hanseníase, PROEX, Universidade Federal do Espírito Santo.

Luiz Arthur Barros,

Grupo de Estudos em Arqueologia e Informa Hanseníase, PROEX, Universidade Federal do Espírito Santo.

e Patricia D. Deps

Grupo de Estudos em Arqueologia e Informa Hanseníase, PROEX, Universidade Federal do Espírito Santo.Departamento de Medicina Social, Pós-Graduação em Doenças Infecciosas, Universidade Federal do Espírito Santo.

Origem e dispersão da hanseníase.

A hanseníase é um termo relativamente recente para designar uma doença muito antiga. Estudos elaborados a partir do sequenciamento do genoma do Mycobacterium leprae, apresentaram datas com origem entre 100 mil a 10 mil anos a.C. (1) (2). Já a identificação de cepas de M. leprae e seus subtipos apontam que a hanseníase teve sua origem entre a Ásia Central ou o Leste da África. Datações de carbono 14 (14C) em esqueletos antigos, confirmaram a presença de hanseníase na região da atual Hungria aproximadamente em 3600 a.C, na India por volta de 2000 a.C, e em vestígios celtas entre 400 a 300 a.C (3) (4). O termo em grego e hebraico, que foi traduzido para lepra no latim, tem seu significado médico duvidoso. Nos textos hipocráticos 500 a.C. se referia à um conjunto de outras moléstias de pele, não apenas a doença que conhecemos hoje como hanseníase. No Antigo Testamento o termo tsara’ath utilizado na Bíblia, significava de forma genérica, sujeira, impureza moral e espiritual do corpo e também englobava diversas doenças de pele, como psoríase e piodermites (5).

Há registros da ocorrência textuais da hanseníase desde 1555 a.C. entre os egípcios e seguidamente entre chineses e indianos no ano 600 a.C. Propagou-se com maior intensidade por todo continente europeu, assim como outras doenças infecciosas, como consequência principalmente das cruzadas e do deslocamento dos peregrinos à Ásia durante a Idade Média (6).

A primeira hipótese de origem da hanseníase apontava para o subcontinente indiano e sua dispersão pela Europa acontecido com o retorno das tropas de Alexandre da Macedônia após o fim de sua campanha militar na Índia. Entretanto, com a demografia acentuada e a emergida das revoluções agrícolas e urbanas a circulação de pessoas e mercadores e processos de urbanização com distinções sociais propiciaram que a doença tivesse um foco de propagação crescente a partir de 6000 anos atrás na medida que o espaço demográfico se tornasse maior (4). No entanto, suas primeiras ocorrências poderiam ter sido esporádicas em áreas de comunidades rurais (7).

Sobre o continente americano não há registros seguros sobre a hanseníase antes da presença europeia (8). É certo que os navegadores europeus no processo de conquista das Américas iniciado no final do século XV trouxeram muitas doenças para o Novo Mundo incluindo a hanseníase. Dessa forma, considerando o agente europeu como responsável, a hanseníase vem como um dos resultados do início das navegações exploratórias, comerciais e colonizadoras empreendidas pelos portugueses, espanhóis, franceses e holandeses durante os séculos XV e XVI. Durante este período, a hanseníase foi disseminada pelo continente americano através de um enorme contingente contaminado, o que pode explicar a origem da doença no Brasil.

Com a perspectiva da causa ser externa ao Brasil, a hanseníase foi produto da presença portuguesa em seu processo colonialista. Em Portugal o escrito mais antigo da Hanseníase é do século I d.C., todavia, o sanatório mais antigo foi construído em 1107 d.C. (9) (10), apresentando a Idade Média como o período mais marcante para a doença. Em poucos séculos da invasão europeia, a hanseníase disseminou-se na América Latina. No caso do Brasil, além dos imigrantes portugueses, os africanos trazidos, como escravos, da África Ocidental foram os responsáveis por disseminá-la (11). Os primeiros casos notificados no Brasil datam do ano de 1600, na cidade do Rio de Janeiro. E entre o século XVII e o início do século XX havia 14 sanatórios em todo o País (12)..

Quando a hanseníase começou a se disseminar nas Américas deu-se um decaimento da mesma como endemia na maior parte da Europa. A exceção da Noruega a hanseníase teve um declínio no restante da Europa, a partir do século XV. As possíveis causas do declínio são as melhorias das condições de vida dos europeus ao longo das Eras Moderna e Contemporânea (13) (14); o fato de que a população europeia adquiriu ao longo do tempo resistência por processos de seleção natural a doença (15) e possíveis repercussões ambientais da “Pequena Idade do Gelo” (1275 a 1300). O resfriamento da Europa no fim da Idade Média, teve impacto na endemia, considerando que a hanseníase apresenta maior desenvolvimento em regiões do planeta com temperaturas mais amenas (16). A Noruega, por ter tido pessoas afetadas pela hanseníase até o século XX, possibilitou as pesquisas sobre o reconhecimento do bacilo e o detalhamento da doença (17) (18).

A hanseníase na história da medicina e as políticas higienistas

O M. leprae foi identificado por volta de 1868, em Bergen, pelo médico norueguês G. H. Amauer Hansen. Como foi dito, a hanseníase desapareceu da Europa no final do século XIX, mas até meados do século XX a forma de controle mais difundida era o isolamento dos pacientes (19).

Apesar de ter existido sanatórios no século V as pessoas acometidas pela hanseníase não eram segregadas e participavam ativamente da vida das sociedades da qual pertenciam. Esse quadro muda a partir do século X. Com isso, as pessoas afetadas eram isoladas para evitar o contágio, inicialmente em cabanas ou pequenas casas (20). No ano de 460 A.D, na França, foi construído o primeiro sanatório da Europa em St. Oyen (hoje St. Claude). A Igreja Católica intensifica ações relacionadas à assistência já que houve um rápido aumento do número pessoas afetadas pela hanseníase, alcançando 19 mil em meados do século XIII.

A história da hanseníase é também a história de um dos estigmas mais antigos e preconceituosos relacionados a uma doença. Com o desenvolvimento da medicina como ciência moderna o espectro religioso perdia espaço para as ações sanitaristas. Ações essas que, apesar de descartarem o aspecto ‘místico’ do pecado, também estabeleceram estimas sobre o comportamento das pessoas afetadas pela hanseníase. Por sua vez, decorre-se apenas uma reformulação, do pecado ou do “carma” para as más condutas, em especial as sexuais ou pela hereditariedade, uma vez que havia casos em crianças (21). A experiencia do sanatório, da ilha de Molokai no Havaí (década de 1880) reforçou entre a comunidade científica daquela época, a necessidade do isolamento por ter sido essa considerada bem-sucedida e pela implementação do primeiro preventório (22).

No Brasil, entre 1640 e 1883, as poucas iniciativas particulares para socorrer as pessoas afetadas pela hanseníase, ocorreram através da fundação de asilos ou hospitais em doze cidades brasileiras. Não houve, por parte dos governos, nenhuma política de saúde organizada para esta finalidade.

Mesmo não estando no centro das atenções no início do século XX, em decorrência dos sucessivos surtos epidêmicos de doenças letais que ocorreram no Brasil, a hanseníase foi considerada doença de notificação compulsória, recebendo tratamento diferenciado.

Durante a década de 1920 a hanseníase continuou a ser amplamente debatida em importantes eventos da área de saúde, no Brasil e no exterior. Com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930, significativas ações passaram a ser executadas de forma centralizada para o combate à hanseníase. Seguindo a orientação do isolamento compulsório, em 1935, foi apresentado o “Plano de construções” com o objetivo de construir colônias para atender a 30.647 pessoas acometidas pela doença. Para ampliar o combate à hanseníase, foi estabelecido o modelo que ficou conhecido como tripé, constituído pelos seguintes estabelecimentos: colônias, dispensários e preventórios (23). As colônias eram destinadas ao isolamento compulsório dos doentes, longe do contato com a população sadia; os dispensários seriam destinados aos comunicantes – familiares e pessoas do convívio do doente e que seriam acompanhados com exames periódicos; os filhos sadios de mães afetadas pela hanseníase seriam retirados de suas famílias e encaminhados aos preventórios para o provimento de abrigo e educação (24).

No Estado do Espírito Santo, foi inaugurado em 1937 a Colônia de Itanhenga (Colônia Pedro Fontes), e em 1940 o Preventório Alzira Bley, próximos à Capital do Estado, Vitória (25).

Foto 1: Hospital Colônia Pedro Fontes (Colônia de Itanhenga) em Cariacica, Espírito Santo. Fonte: Foto de Tadeu Bianconi, 2004.

Na década de 1940, como tentativa de combater a doença, houve a introdução da sulfona na prática médica. A monoterapia com a sulfona, também conhecida por dapsona, foi um marco na história da hanseníase, uma vez que permitiu acreditar na possibilidade de cura e erradicação, e a possibilidade do controle ambulatorial da doença. Em 1964, Pettit & Rees comprovaram que os bacilos ficaram resistentes ao uso da sulfona como monoterapia. Em 1977, a Organização Mundial da Saúde passou a recomendar o uso de medicamentos combinados para o tratamento da hanseníase, conhecido como esquema poliquimioterápico (PQT), que possibilitou a cura clínica da doença. Esse esquema é resultado da combinação de três medicamentos, rifampicina, dapsona e clofazimina (26).

Leis discriminatórias e a mudança da terminologia no Brasil

Antes da década de 1960, foi iniciada o processo de desativação progressiva e a ressocialização das pessoas que foram segregadas em colônias em todo Brasil. Em 1962, foi abolida a internação compulsória por hanseníase no Brasil.

Algumas províncias como São Paulo (com internação compulsória) e Minas Gerais (com restrição de atividades) possuíam leis discriminatórias direcionadas às pessoas afetadas pelo bacilo (15). Atualmente, no Brasil não mais existe lei discriminatória contra as pessoas afetadas pela hanseníase, entretanto, elas ainda estão presentes em 23 países apesar da Declaração dos Direitos Humanos de 1948 que estabelece que nenhuma pessoa pode ser discriminada por ter doença (27).

Índia, país com maior número de pessoas afetadas pela hanseníase, possui 114 leis segregacionistas. Tais leis prejudicam a vida das pessoas pelo fato de serem afetadas pela hanseníase, as discriminando pela invalidez e incapacidade de exercer diversas tarefas, além da necessidade de autorização para ingresso em transportes públicos e restrição de imigração em outros país. Estas leis aumentam o estigma contra a hanseníase.

Em 1976, com decreto presidencial, o nome da doença foi modificado de lepra para hanseníase no Brasil. Este fato foi resultado da luta do dermatologista brasileiro Abrahão Rotberg, combatente do que ele chamava de lepraestigma. Em 1995, impulsionado pelo Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), o decreto presidencial virou a Lei Federal 9.010, que baniu o termo ‘lepra’ e derivados, como ‘leproso’, ‘leprosário’ e ‘lepromatoso’, da prática clínica e dos documentos institucionais no Brasil (28) .

A formulação de políticas públicas de saúde considerou a situação sanitária, porém negligenciou direitos individuais inalienáveis. No Brasil como em outros países a mobilização de movimentos sociais a exemplo do MORHAN, fundado em 1981, tem como objetivo a erradicação hanseníase, uma doença comum e curável, e contribuir na formulação de políticas públicas para atender as pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares (29).

Colaboradores acadêmicos

Beatriz Nicoli Ferreira e

Daniel Drago Rosário dos Santos

Referências

  1. Monot M, Honoré N, Garnier T, Araoz R, Coppée J-Y, Lacroix C, et al. On the origin of leprosy. Science. 13 de maio de 2005;308(5724):1040–2.

  2. Gillis T, Vissa V, Matsuoka M, Young S, Richardus JH, Truman R, et al. Characterisation of short tandem repeats for genotyping Mycobacterium leprae. Lepr Rev. setembro de 2009;80(3):250–60.

  3. Robbins G, Tripathy VM, Misra VN, Mohanty RK, Shinde VS, Gray KM, et al. Ancient skeletal evidence for leprosy in India (2000 B.C.). PloS One. 27 de maio de 2009;4(5):e5669.

  4. Roberts C. The Bioarchaeology of Leprosy: Learning from the Past [Internet]. International Textbook of Leprosy. 2017 [citado 13 de maio de 2020]. Disponível em: https://internationaltextbookofleprosy.org/chapter/bioarchaeology-leprosy-learning-skeletons

  5. Roffey S, Tucker K, Filipek-Ogden K, Montgomery J, Cameron J, O’Connell T, et al. Investigation of a Medieval Pilgrim Burial Excavated from the Leprosarium of St Mary Magdalen Winchester, UK. PLoS Negl Trop Dis. 26 de janeiro de 2017;11(1):e0005186.

  6. Browne SG. Lepra na Bíblia: estigma e realidade. 1a Ed. Editora Ultimato; 2003. 67p p.

  7. Deps PD. Hanseníase ontem e hoje. In: Deps PD, organizador. O dia em que mudei de nome: hanseníase e estígma. 1o ed Paris: Éditions de Boccard; 2019. p. 29–61. (Collection Pathographie).

  8. Timeline | International Leprosy Association - History of Leprosy [Internet]. 2020 [citado 27 de maio de 2020]. Disponível em: https://leprosyhistory.org/timeline/

  9. Madeira, A. A lepra e seus tratamentos (noções gerais). Porto: Emp. Indust. Gráfica Ltda.; 1924.

  10. Antunes-Ferreira N, Santos AL, Matos VMJ. Leprosy in individuals unearthed near the Ermida de Santo André and Leprosarium of Beja, Portugal. Anthropol Sci. setembro de 2013;121 (3):149–59.

  11. Agrícola E. Manual de Leprologia. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde (DNS/SNL); 1960. 11–29 p.

  12. Santos VSM dos. Pesquisa documental sobre a história da hanseníase no Brasil. História Ciênc Saúde-Manguinhos. 2003;10(suppl 1):415–26.

  13. Matos VMJ de. O diagnóstico retrospectivo da lepra: complementaridade clínica e paleopatológica no arquivo médico do Hospital-Colónia Rovisco Pais (século XX, Tocha, Portugal) e na colecção de esqueletos da leprosaria medieval de St. Jorgen’s (Odense, Dinamarca). 22 de março de 2010 [citado 1o de agosto de 2020]; Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/20078

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  16. Charlier P, Héry-Arnaud G, Coppens Y, Malaurie J, Hoang-Oppermann V, Deps P, et al. Global warming and planetary health: An open letter to the WHO from scientific and indigenous people urging for paleo-microbiology studies. Infect Genet Evol. 1o de agosto de 2020;82:104284.

  17. Rosen G. Uma história da saúde pública. 1o ed. São Paulo: Hucitec - Editora da UNESP; 1994.

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  21. Claro LBL. Hanseníase: representações sobre a doença, estudo em população de pacientes ambulatoriais no Rio de Janeiro [Mestrado]. [Rio de Janeiro]: Fundação Oswaldo Cruz; 1993.

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  28. Deps P, Cruz A. Why we should stop using the word leprosy. Lancet Infect Dis. 2020;20(4):e75–8.

  29. Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN) http://www.morhan.org.br/


Sobre os Autores

Henrique Antônio Valadares Costa

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Luiz Arthur Barros

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Patricia D. Deps

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