Hanseníase na Infância

por Patrícia D. Deps,

Departmento de Medicina Social, Programa de Pós-Graduação em Doenças Infecciosas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil

e Maria Angélica Andrade.

Departmento de Medicina Social, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil

A hanseníase em menores de quinze anos e suas consequências vêm sendo objeto de estudo por parte de diversos autores e órgãos internacionais. Existem numerosos relatos de casos dessa enfermidade em faixas etárias menores de quinze anos, sendo a justificativa para esse fato a existência de um aumento na cadeia de transmissão do bacilo na comunidade, além de uma deficiência na vigilância e no controle da doença. (1,2,3) A hanseníase na infância é problema de saúde pública, é um dos indicadores mais sensíveis de exposição precoce, persistência da transmissão na comunidade e eficácia limitada dos programas de controle. A detecção nessa faixa de idade é tomada como um indicador de maior gravidade da endemia. Em países endêmicos, a população infantil entra precocemente em contato com pessoas acometidas pela hanseníase, sendo frequente a detecção da doença entre crianças de três a cinco anos e ainda, felizmente são observados raros casos em menores de dois anos, principalmente da forma virchowiana. (4,5) Observam-se diferenças na prevalência entre regiões, estados, microrregiões, e municípios, concentrando-se nos locais de maior pobreza, apresentando uma estreita relação com as condições precárias de habitação, baixa escolaridade e ainda, com movimentos migratórios que facilitam a difusão da doença.

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa crônica que atinge predominantemente a pele e os nervos periféricos. O diagnóstico é essencialmente clínico e epidemiológico, sendo realizado por meio da anamnese e do exame dermatoneurológico. Na infância, o diagnóstico exige exame criterioso diante da dificuldade de aplicação e interpretação dos testes de sensibilidade. Os sinais clínicos da hanseníase muitas vezes não são fáceis de serem reconhecidos na infância. (5) A própria idade desses pacientes é um fator limitante, embora em algumas regiões endêmicas seja elevado o número de crianças com deformidades provocadas pela hanseníase. (6) Estudos feitos a respeito do tema identificam a quantidade de meninos afetados pela hanseníase sendo superior à de meninas, entretanto, não existe nenhuma comprovação biológica de que as pessoas do sexo masculino têm menor resistência à doença. A alta endemicidade da doença em uma área irá proporcionar múltiplas exposições da população ao bacilo, além de propiciar que tal exposição se dê nos primeiros anos de vida. Por isso, uma hipótese mais aceita é a que os meninos, de maneira geral, são expostos a interações sociais mais frequentes e intensas de forma mais antecipada se comparados às meninas. (7)

A hanseníase tem tratamento e cura. Porém, se no momento do diagnóstico o paciente já apresentar alguma deformidade física instalada, esta pode ficar como sequela permanente. Na infância, a hanseníase é potencialmente incapacitante em decorrência da possibilidade de deformidades, por que esse é um período de crescimento e desenvolvimento. A importância desses agravos e seus problemas sociais, físicos e desenvolvimento psicológico não podem ser negligenciados devido à possibilidade de o próprio futuro dessas crianças estar comprometido. (8) Tal fato foi abordado em recente estudo que expôs a relação entre o baixo domínio da capacidade motora e de atividades escolares associado à presença das alterações físicas advindas da hanseníase. (9) Já a questão social é evidenciada pelo alto número de afetados em decorrência da transmissão intrafamiliar e a não exposição a pessoas fora da família acerca do tratamento realizado pela criança acometida pela hanseníase, o que evidencia a discriminação e o estigma acerca da doença manifestando-se de maneira prejudicial, permitindo o contato de pessoas saudáveis com pessoas acometidas pela hanseníase sem o conhecimento prévio da situação. (10) Importante ressaltar que, geralmente, essas crianças têm suas rotinas alteradas pelos limites da doença e do tratamento.

A hanseníase apresenta uma variedade de manifestações clínicas que estão relacionadas com as condições imunológicas do paciente e sua relação com M. leprae. A maioria das crianças diagnosticadas com hanseníase são classificadas como PB, embora a OMS vem alertando para o aumento do número de MB entre novos casos detectados. (11) Alguns estudos já apontam a predominância da forma MB em algumas regiões endêmicas. (12,13) Geralmente as crianças são contatos intradomiciliares, principalmente entre aqueles que convivem com casos de pacientes MB. Assim como em todas as doenças com longo período de incubação, há aumento dos casos com o progredir da idade. (14) A baixa frequência da doença em menores de 5 anos, o aumento diretamente proporcional do número de casos com o avançar da idade e a distribuição quase igualitária em relação às faixas etárias de 5 a 10 anos e de maiores de 10 anos até os 15 anos são características frequentemente observadas. (15)

A taxa de detecção de novos casos em menores de 15 anos está diretamente relacionada ao nível de endemicidade e reflete a exposição precoce ao M. leprae. (16) Por isso, o estudo dos indicadores de hanseníase nessa faixa etária é necessário para se conhecer a magnitude e a força da endemia e o desempenho do sistema de saúde na vigilância da doença. Sabe-se também da estreita relação entre a detecção precoce em conjunto a um acesso oportuno ao sistema de saúde enquanto forma de ajudar a prevenir e deter a deformidade progressiva oriunda da hanseníase. (17) O diagnóstico equivocado ou atrasado também é presente, provocando maiores transtornos à criança acometida. (18) O diagnóstico incorreto, por erros na abordagem diferencial com outras doenças dermatológicas ou neurológicas, pode ser uma das justificativas possíveis para o número excessivo de casos notificados em crianças.

A maioria apresenta menos de três lesões no momento do diagnóstico, sendo que muitas dessas pessoas apresentam somente lesões cutâneas do tipo máculas.

O quadro clínico pode ser variado assim como nos adultos. A hanseníase nodular da infância é um quadro frequentemente visto e foi descrito no capítulo de aspectos clínicos. Cerca de 5 a 20% das crianças com hanseníase apresentarão episódios de reação (exacerbação de processos inflamatórios, localizados ou sistêmicos) em algum momento antes, durante e / ou após o término da poliquimioterapia (PQT).(19) Complicações associadas a episódios reacionais de hanseníase ou devido ao uso prolongado de corticosteróides no tratamento também foram observados. (19) A complementação do diagnóstico pelos testes de histamina e pilocarpina ou pela histopatologia são frequentemente utilizados. Também se observa a necessidade do exame em pessoas com hanseníase ser estendido à mucosa oral, visto que essa pode ser uma fonte secundária de transmissão e infecção pela M. leprae.(20)

Tendo em vista a gravidade da hanseníase em menores de 15 anos, um controle rigoroso envolvendo a vigilância epidemiológica é mantido em crianças sob o risco de contrair a hanseníase, principalmente, devido ao contato intradomiciliar. (21)

A proporção de casos novos de hanseníase em menores de 15 anos é utilizada para expressar transmissão ativa e recente, (22,23) sendo assim, é um importante indicador da ocorrência dessa doença em uma comunidade e da eficácia dos programas de saúde realizados em uma região (24). De acordo com Sundharam, (25) o exame físico em menores de 15 anos de idade fica prejudicado em função da recusa de muitas crianças em se despir, ou ainda, pela dificuldade de comunicação com os profissionais de saúde. No Brasil, por exemplo, o estado do Pará registrou 2562 novos casos de contaminados em 2017, sendo 8,7% desses envolvendo crianças, o que evidencia problemas no controle dessa enfermidade. (26) A divulgação dos sinais e sintomas da doença para a população em geral constitui-se em um instrumento adicional para a eliminação da endemia. (27,28,29)

Medidas de prevenção e controle mais específicas, voltadas para a parcela da população do presente estudo, menores de 15 anos, também poderiam ser adotadas, como: busca ativa em escolas e creches, a realização de palestras esclarecendo os sinais e sintomas da doença e a intensificação dos exames de comunicantes. Avaliar a necessidade da criação de novas estratégias para realizar a educação em saúde, com foco na hanseníase, também se faz importante, estimulando, durante as ações educativas, o autoexame entre as crianças capazes de realizá-lo. Com essas práticas, poder-se-á incrementar a detecção de casos novos e tratamento precoce, gerando uma quebra na cadeia de transmissão.

Também se mostra importante a extensão das medidas de prevenção às regiões em que a hanseníase é estatisticamente erradicada, a fim de minimizar os prejuízos que a condição pode trazer à parcela referida da comunidade. (30)

Colaboradores acadêmicos

Lucas Medeiros,

Maicon Saar Alves

Referências bibliográficas

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