Estigma e hanseníase

por Magda Levantezi

Coordenação Geral de Doenças em Eliminação.Departamento de Doenças de condições crônicas e infeções sexualmente transmissíveis (DCCI),Secretaria de Vigilância em Saúde,Ministério da Saúde do Brasil.

e Patrícia D. Deps

Departamento de Medicina Social, Universidade Federal do Espírito Santo.

Introdução

A origem do estigma da hanseníase é provavelmente fundamentada no medo do contágio de uma “doença desfigurante e incurável”, presente no imaginário de algumas sociedades, principalmente antes da instituição dos tratamentos com antimicrobianos. Por muito tempo pessoas acometidas pela hanseníase foram rejeitadas pela sociedade, família e amigos e condenados a viver em total situação de privação perdendo o contato com o mundo externo para evitar a contaminação. Entretanto, atualmente a hanseníase é uma doença curável, que se diagnosticada precocemente, evita o desenvolvimento de incapacidades físicas.1

O estigma produz consequências negativas que resultam em interações sociais desconfortáveis, limitam redes sociais, perpetuando o ciclo da exclusão social e econômica, consequentemente levando à perda do status do indivíduo e à discriminação, aumentando a vulnerabilidade de pessoas e grupos.2 Em outras palavras, o estigma pode causar limitações em atividades sociais, vergonha, problemas de relacionamentos familiares e dificuldades no emprego. O estigma impacta negativamente a qualidade de vida das pessoas acometidas pela hanseníase e seus familiares.3

No Brasil, na segunda metade do século XX, o estigma e o preconceito contra as pessoas afetadas pela hanseníase, que eram segregadas em hospitais-colônias, foram provavelmente os principais responsáveis pelas dificuldades da ressocialização e do retorno ao convívio com seus familiares e em sociedade.1 Ainda assim, o estigma é, provavelmente, o tema mais negligenciado dentre todos os aspectos acerca da hanseníase.

No Brasil, ações protagonizadas pelo dermatologista Abrão Rotberg (1969) e pelo MORHAN (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase) resultaram na Lei 9010/1995 que proibiu o uso do termo lepra e seus derivados na linguagem empregada nos documentos oficiais e na prática clínica,4 já que a palavra lepra trazia forte estigma no imaginário da sociedade. A experiência brasileira de renomear a doença para hanseníase nas últimas quatro décadas repercutiu claramente em benefício como medida no combate ao estigma e discriminação.5

Neste mesmo sentido, ações para a mudança do nome da doença em outros países e para banir o termo lepra (em várias línguas) a nível mundial têm sido recentemente invocadas contra a discriminação.5

Em 2010, uma das importantes medidas de enfrentamento ao estigma relacionado à hanseníase foi recomendada durante a Assembléia Geral da ONU que adotou a resolução 65/215 sobre a eliminação da discriminação contra as pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares, que deveriam ser tratadas como indivíduos com dignidade e assegurados todos os direitos humanos e liberdades fundamentais conforme o direito internacional, as convenções aplicáveis, as constituições e leis.6

Em 2017, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou a Resolução n.º 35/9 que estabelece o mandato de um Relator Especial para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase e seus Familiares.

Com a mesma preocupação, a OMS incluiu medidas e metas voltadas à redução do estigma e à inclusão social, com o objetivo de abolir leis discriminatórias na “Estratégia Global para a Hanseníase 2016-2020 - Aceleração rumo a um mundo sem hanseníase”.7

Considerando os desafios para o enfrentamento da doença e alicerçado na Estratégia Global, o Ministério da Saúde do Brasil elaborou a “Estratégia Nacional para o Enfrentamento da Hanseníase: 2019-2022”, que tem por objetivo geral reduzir a carga da doença e o enfrentamento ao estigma e promoção da inclusão social.8

Conceituando estigma, estigmatização, discriminação e preconceito.

Estigma pode ser definido como um atributo negativo, depreciativo, que torna o sujeito diferente, diminuído ou possuidor de uma desvantagem,9 e está intimamente ligado às normas culturais, valores e estruturas de cada sociedade.10,11

A estigmatização é uma condição resultante de quando são estabelecidos rótulos a partir de distinções entre pessoas e crenças culturais ou seja, a taxação de estereótipos negativos, que resulta na separação entre “nós” e “eles” gerando perda de status, discriminação e desigualdades.11

A discriminação se refere ao tratamento injusto ou negativo praticado a uma pessoa ou grupo, por terem uma determinada característica (etnia, idade, gênero) ou por apresentarem uma condição de saúde (ou doença).12

Preconceito é a atitude hostil ou aversiva dirigida a uma pessoa ou grupo que tenha qualidades consideradas censuráveis socialmente.13

Enfrentado o estigma e a discriminação na hanseníase

A hanseníase é uma doença, na maioria dos casos, relacionada à pobreza, condições sanitárias e de habitação precárias, e resultante da dificuldade de acesso aos sistemas de saúde.,Sua distribuição heterogênea deve ser analisada na perspectiva dos determinantes sociais (Savassi et al, 2009).14

Para fazermos o enfrentamento ao estigma e à discriminação é necessário entendermos esses fenômenos como processos sociais e como se estabelecem as desigualdades que resultam em exclusão social.

Leis, regras e procedimentos administrativos podem causar consequências importantes para a estigmatização e discriminação relacionadas à hanseníase.

O Brasil se destaca por ser o único país no mundo que desenvolveu legislação que proíbe linguagem discriminatória contra as pessoas com hanseníase, porém as ocorrências de práticas discriminatórias são frequentemente reportadas e para conhecermos esse universo e podermos enfrentar essas situações, incentivamos os serviços de saúde a adotarem canais que possibilitem a denúncia contra violação de direitos humanos cometidos às pessoas com hanseníase.

A experiência individual acerca da estigmatização e discriminação está fortemente ligada à influência de crenças culturais e às formas de estigmatização enraizadas na sociedade. Em geral ocorre uma representação negativa da pessoa com hanseníase, reforçada por metáforas e linguagem pejorativa que tendem a reforçar o medo e a levar a pessoa à exclusão social e ao isolamento. Não é raro essa condição se estender à família e, em alguns casos, aos amigos, a denominada estigmatização secundária.15 O profissional de saúde precisa estar atento para não permitir que essa experiência negativa resulte em prejuízo ao acesso aos serviços de saúde, ao tratamento e aos cuidados.

O estigma, a estigmatização e a discriminação ligadas à hanseníase podem surgir em diferentes contextos e se apresentarem sob diferentes formas: famílias e comunidade, escolas, local de trabalho e em unidades de serviços de saúde.16

Em alguns serviços, a existência de consultório específico para atendimento ou a localização deste propositalmente no final de um corredor, horários específicos para procedimentos como curativos, ou ainda a existência de barreiras físicas como vidros para “proteção” do profissional que fará o atendimento, a existência de barreiras físicas que dificultem ou impeçam a presença física em espaços públicos são exemplos de violência institucional.

Considerações importantes para o enfrentamento ao estigma, discriminação e promoção da inclusão social.

Para o enfrentamento ao estigma é necessário conhecimento da situação, boa vontade, educação e ações afirmativas.

São práticas de enfrentamento as ações para tornar a hanseníase um símbolo positivo nas agendas de políticas públicas, para combater a desvantagem estrutural e empoderar as pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares. Outras ações incluem o fortalecimento da sensibilização e conscientização, a participação social e pública das pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares e sua capacitação para se tornarem os principais protagonistas na eliminação do estigma e da discriminação relacionados à hanseníase, garantindo sustentabilidade às ações de longo prazo.

O enfrentamento ao estigma muitas vezes exige intervenções abrangentes e intersetoriais. O conhecimento da rede de atenção é primordial para que o profissional de saúde referencie o paciente para serviços complementares, como atendimento psicológico, social e até mesmo jurídico.

Um canal para registro das práticas discriminatórias também é essencial para garantia dos direitos humanos e à saúde. Um exemplo dessa ação é o Observatório Nacional de Direitos Humanos e Hanseníase, da Defensoria Pública da União,17 que é um espaço destinado a receber registro e monitorar notícias de violações a direitos de pessoas com hanseníase através de um formulário disponibilizado no seguinte endereço: www.dpu.def.br/observatorio-hanseniase.

A estigmatização e a discriminação extrapolam a psicologia individual ou social e resultam em desigualdade e exclusão. Portanto, para minimizar seus efeitos devastadores se faz necessário considerar intervenções direcionadas a comunidades e populações estigmatizadas que motivem o poder de resistência e que criem modelos e ações que promovam a advocacy visando uma transformação social.18

Escalas foram desenvolvidas para mensurar a dimensão ou gravidade do estigma, bem como a participação social, para caracterizar a limitação funcional, consciência de risco, e restrição à participação social, para monitorar os níveis de estigma numa linha do tempo, e para avaliar os resultados a fim de ajustar as ações. Algumas servem para contextualizar as políticas públicas adotadas e o papel da hanseníase na qualidade de vida, como as escalas da OMS: WHO Disability Assessment Schedule (WHODAS 2.0), Word Health Organization Quality of Life Assessment (WHOQOL-Bref),19 e WHOQOL-DIS.20

A Escala de Participação (P-Scale) mensura a participação social de pessoas acometidas pela hanseníase.21

Se o objetivo for mensurar o estigma percebido e autoestigma, a escala Explanatory Model Interview Catalogue (EMIC) pode ser utilizada. Há duas versões, uma para os membros da comunidade e outra para a pessoa afetada pela hanseníase dentro do contexto cultural brasileiro.22 Essa escala investiga percepções, crenças e práticas relacionadas à doença, possibilitando uma visão mais abrangente acerca da experiência do adoecimento e de seus possíveis impactos psicossociais.

A escala conhecida como Internalized Stigma of Mental Illness (ISMI) tem a capacidade de mensurar o estigma internalizado, abarcando cinco componentes: alienação, endosso do estereótipo, discriminação percebida, retração social e resistência ao estigma. A escala de estigma SARI derivada da escala de estigma Berger utilizada para pessoas infectadas pelo HIV, propõe quantificar como o estigma é sentido e vivenciado pelas pessoas na comunidade.3,23

Outra escala que foi utilizada na hanseníase é a Screening Activity Limitation and Safety Awareness (SALSA) que tem por objetivo medir limitação de atividade.24 Juntamente com a P-Scale, é recomendada pelo Ministério da Saúde (Brasil) para identificar dificuldades nas atividades da vida diária e na inserção social de pessoas acometidas pela hanseníase.

Entretanto, como já mencionadas, inúmeras ações positivas para combate do estigma podem ser implementadas, independentemente das medidas de estigma realizadas pelas diversas escalas existentes.

Revisor

Prof. Dr. Marcos Cesar Floriano

Colaboradora acadêmica

Thauyra Isis Aparecida de Oliveira

Referências

  1. Deps, P. O dia em que mudei de nome - Hanseniase e estigma [The day I changed my name – Hansen’s disease and stigma]. Capítulo 1: The discovery of the Colony of Itanhenga and Hansen’s Disease. (Édition De Boccard, 2019).

  2. Godoi, A. M. M. & Garrafa, V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saúde E Soc. 23, 157–166 (2014).

  3. Dadun et al. Cultural validation of a new instrument to measure leprosy-related stigma: the SARI Stigma Scale. Lepr. Rev. 88, 23–42 (2017).

  4. Brasil. Lei Federal no 9.010 de 29 de março de 1995. Dispõe sobre a terminologia oficial relativa à hanseníase e dá outras providências. Brasília. (DF); 1995. Portal da Câmara dos Deputados (2020). Available at: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9010-29-marco-1995-348623-publicacaooriginal-1-pl.html.

  5. Deps, P. & Cruz, A. Why we should stop using the word leprosy. Lancet Infect. Dis. 20, e75–e78 (2020).

  6. Resolução 65/215. Eliminação da discriminação contra as pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares. Available at: https://undocs.org/en/A/RES/65/215.

  7. Global Leprosy Strategy 2016–2020. Accelerating towards a leprosy-free world. Monitoring and Evaluation Guide. (World Health Organization. Regional Office for South-East Asia, 2017).

  8. Estratégia Nacional para o Enfrentamento da Hanseníase 2019-2022. (2020). Available at: https://www.saude.gov.br/acesso-a-informacao/participacao-social/45319-consulta-publica-n-1-estrategia-nacional-para-o-enfrentamento-da-hanseniase-2019-2022.

  9. Goffman. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

  10. Becker, G. & Arnold, R. Stigma as a Social and Cultural Construct. in The Dilemma of Difference: A Multidisciplinary View of Stigma (eds. Ainlay, S. C., Becker, G. & Coleman, L. M.) 39–57 (Springer US, 1986).

  11. Link, B. G. & Phelan, J. C. Conceptualizing Stigma. Annu. Rev. Sociol. 27, 363–385 (2001).

  12. Parker. Interseções entre estigma, preconceito e discriminação na saúde pública mundial. In: Monteiro S, Villela W, organizadores. Estigma e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 25-46.

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  15. Galtung J. , Kulturelle G. Der Bürger im Staat. 1993; 43: 106-12.

  16. ILEP Diretrizes para redução do Estigma Guia 3, 2011.

  17. Observatório Nacional de Direitos Humanos e Hanseníase. Available at: https://www.dpu.def.br/observatorio-hanseniase.

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