Epidemiologia da Hanseníase

por Josafá Gonçalves Barreto

Universidade Federal do Pará, Brasil.

Indicadores epidemiológicos e operacionais

Diversos indicadores epidemiológicos são analisados para uma completa avaliação da situação da transmissão e da eficiência das medidas de controle da hanseníase em um determinado território e período. Não esgotaremos este tema neste texto, mas para facilitar a consulta e a compreensão de sua utilidade, reunimos no Quadro 1 uma seleção de indicadores considerados de extrema relevância.

Quadro 01

Fonte: Adaptado de “Diretrizes para vigilância, atenção e eliminação da hanseníase como problema de saúde pública [1].”

Hanseníase no mundo

O número de casos novos de hanseníase registrados anualmente no mundo tem se mantido relativamente estável, acima dos 200.000, nos últimos 10 anos, com média de 220.367 casos. Dos 159 países e territórios que enviaram informações à OMS em 2018, 32 reportaram zero casos, 47 reportaram 1-10, 24 reportaram 11-100, 41 reportaram 101-1000, 12 reportaram ≥ 1.000 casos, e apenas três países reportaram mais de 10.000 casos. Cerca de 80% de todos os casos do mundo são notificados apenas nestes três países (Índia, Brasil e Indonésia). Dentre as notificações de 2018, 125.491 (60,2%) casos foram em pessoas do sexo masculino; 130.169 (62,4%) casos foram classificados como MB; 16.013 (7,7%) foram pessoas menores de 14 anos de idade e 11.323 (5,4%) já apresentavam grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico [2].

Hanseníase no Brasil

O Brasil tem apresentado uma diminuição do número de notificações de casos novos nos últimos 15 anos, entretanto houve um acréscimo nos últimos dois anos em função do aumento dos esforços de busca ativa implementados pelo Ministério da Saúde e por alguns estados e municípios. Em 2018, foram 28.660 casos novos detectados no país, resultando em uma taxa anual de detecção geral de 13,7/100.000 habitantes, considerada alta pelos parâmetros do Ministério da Saúde. Com isso, o Brasil notificou 92,6% de todos os casos das Américas em 2018. Outros indicadores selecionados nos mostram o seguinte panorama para o Brasil em 2018: 1) Taxa entre menores de 15 anos = 3,7 (alto); 2) Proporção de grau 2 no diagnóstico = 8,5% (médio); 3) Proporção de cura = 80,6% (regular) e 4) Proporção de contatos examinados = 81,4% (regular) [2,3].

A distribuição espacial da hanseníase é muito heterogênea no Brasil, com a taxa de detecção anual variando de 1,0 a 138,3 por 100.000 habitantes nos estados do Rio Grande do Sul e Mato Grosso em 2018, respectivamente. A taxa média nos estados da Amazônia brasileira (47/100.000) é 4,2 vezes maior do que a média dos estados não amazônicos (11/100.000) [4]. Um videodocumentário, intitulado “Hanseníase: endemia oculta na floresta amazônica”, mostrando o trabalho de pesquisa e busca ativa de casos novos entre contatos de casos de hanseníase e entre estudantes menores de 15 anos em escolas públicas no interior do Pará, ajuda a compreender o papel dos determinantes sociais para a manutenção da endemia e os desafios que são enfrentados pelos profissionais da saúde nestas áreas (link de acesso https://youtu.be/dRszse7bfao).

Essas diferenças regionais também são notáveis quando analisamos outros indicadores selecionados: 1) Taxa entre menores de 15 anos (menor = 0,1 no Rio Grande do Sul; maior = 30,1 em Tocantins); 2) Proporção de grau 2 no diagnóstico (menor = 4,8% no Espírito Santo; maior = 24,8% no Rio Grande do Sul); 3) Proporção de cura (menor = 59,9% no Distrito Federal; maior = 96,9% no Acre); 4) Proporção de contatos examinados (menor = 51,3% no Amapá; maior = 94,1% no Espírito Santo)[3].

A análise destes indicadores selecionados mostra que a hanseníase permanece sendo um problema de saúde pública no Brasil, com grandes diferenças regionais que requerem estratégias distintas e planejadas de acordo com as necessidades das diferentes regiões do país. A hiperendemia entre menores de 15 anos em estados como o Tocantins, Mato Grosso, Maranhão e Pará indica claramente que a transmissão da doença está em expansão nestes estados. Enquanto a alta proporção de grau 2 de incapacidade física no diagnóstico no Rio Grande do Sul, bem como em toda região Sul e Sudeste do país, com exceção ao estado do Espírito Santo, reflete o atraso no diagnóstico dos casos, o que contribui para a manutenção da cadeia de transmissão da doença em regiões pretensamente de baixa prevalência.

As barreiras para o diagnóstico oportuno e precoce de casos de hanseníase incluem problemas relacionados aos pacientes, tais como medo do diagnóstico, falta de informações sobre os sinais e sintomas da doença e até mesmo a procura de “curandeiros tradicionais” como primeira ou única opção de tratamento para as suas lesões; bem como problemas relacionados aos serviços de saúde, resultando em erros e atraso nos diagnósticos, podendo levar anos até que o paciente consiga um diagnóstico preciso e o tratamento adequado [5–7], o que é inaceitável em um país endêmico como o Brasil.

Endemia oculta e emergência de resistência medicamentosa

Estima-se que mais de 4 milhões de pessoas no mundo possuam hanseníase sem diagnóstico e, consequentemente, sem tratamento. Este grande número de casos não diagnosticados, chamado de endemia oculta, é uma constante ameaça ao controle da doença, aumenta a carga de infecção na comunidade e a pressão de transmissão [8]. Estudos brasileiros também têm demonstrado a magnitude deste problema em território nacional, incluindo a alta prevalência oculta em crianças menores de 15 anos de idade, chegando a ser 17 vezes mais alta do que a prevalência registrada [9–13].

Além da endemia oculta, a emergência de cepas de M. leprae resistentes a fármacos componentes da poliquimioterapia (PQT) preconizada para o tratamento da hanseníase tem criado barreiras adicionais ao efetivo controle da doença. O primeiro estudo prospectivo global, realizado pela OMS em 19 países, que incluiu 1.932 pessoas afetadas pela hanseníase, encontrou 154 (8%) de cepas de M. leprae com mutações conferindo resistência medicamentosa [14]. No mesmo estudo, o Brasil notificou o dobro de casos resistentes a rifampicina, quando comparado a Índia (taxa de resistência de 9,1% versus 4,7%). Considerando apenas os casos novos, o Brasil apresentou a maior taxa de casos resistentes (15,6%), conhecido como resistência primária.

Um estudo recente, realizado na Vila do Prata, uma antiga colônia de hansenianos localizada no Pará, detectou 43,2% (16/37) de cepas resistentes. A resistência múltipla à rifampicina e dapsone foi observada em oito recidivas e quatro casos novos [15]. Outro estudo também detectou cepas resistentes em cidades próximas a ex-colônia do Prata, bem como em diversas outras áreas do Brasil e do mundo [16]. Este alarmante cenário de emergência e transmissão de cepas resistentes faz com que a vigilância da resistência medicamentosa seja uma das prioridades no estudo da hanseníase na atualidade.

Colaboradores acadêmicos

Juliana Tancredo Carlini e

Lavínia Damacena Perin

Referências

  1. Ministério da Saúde. Diretrizes para a vigilância, atenção e eliminação da hanseníase como problema de saúde pública: manual técnico-operacional. [Internet]. 1a ed. Secretaria de Vigilância em Saúde D de V das DTM da S, editor. Ministério da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis; 2016. doi:978-85-334-2348-0

  2. WHO. Global leprosy update, 2018: moving towards a leprosy-free world. Wkly Epidemiol Rec. 2019;94: 389–412. Available: http://www.who.int/wer

  3. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico hanseníase 2020 [Internet]. 1a ed. Saúde M da, editor. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis; 2020. Available: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/janeiro/31/Boletim-hanseniase-2020-web.pdf

  4. Schaub R, Avanzi C, Singh P, Paniz-Mondolfi A, Cardona-Castro N, Legua P, et al. Leprosy Transmission in Amazonian Countries: Current Status and Future Trends. Curr Trop Med Reports. Current Tropical Medicine Reports; 2020; 1–13. doi:10.1007/s40475-020-00206-1

  5. Henry M, GalAn N, Teasdale K, Prado R, Amar H, Rays MS, et al. Factors contributing to the delay in diagnosis and continued transmission of leprosy in Brazil – an explorative, quantitative, questionnaire based study. PLoS Negl Trop Dis. Public Library of Science; 2016;10: e0004542. doi:10.1371/journal.pntd.0004542

  6. Deps PD, Guedes BVS, Bucker Filho J, Andreatta MK, Marcari RS, Rodrigues LC. Delay in the diagnosis of leprosy in the Metropolitan Region of Vitória, Brazil. Lepr Rev. 2006;77: 41–47.

  7. Trindade MAB, Varella TCN, Cisneros CGC, Bottini V, Moura AKA. Delayed diagnosis of multibacillary leprosy: a report of eight cases. Brazilian J Infect Dis. The Brazilian Journal of Infectious Diseases and Contexto Publishing; 2009;13: 155–157. doi:10.1590/S1413-86702009000200017

  8. Smith WC, van Brakel W, Gillis T, Saunderson P, Richardus JH. The Missing Millions: A Threat to the Elimination of Leprosy. PLoS Negl Trop Dis. Public Library of Science; 2015;9. doi:10.1371/journal.pntd.0003658

  9. Barreto JG, Guimarães L de S, Frade MAC, Rosa PS, Salgado CG. High rates of undiagnosed leprosy and subclinical infection amongst school children in the Amazon region. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2012;107: 60–67. doi:10.1590/S0074-02762012000900011

  10. Barreto JG, Guimarães LDS, Leão MRN, Ferreira DVG, Lima RADA, Salgado CG. Anti-PGL-I seroepidemiology in leprosy cases: household contacts and school children from a hyperendemic municipality of the Brazilian Amazon. Lepr Rev. 2011;82: 358–70. Available: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22439276

  11. Barreto JG, Bisanzio D, de Guimarães LS, Spencer JS, Vazquez-Prokopec GM, Kitron U, et al. Spatial Analysis Spotlighting Early Childhood Leprosy Transmission in a Hyperendemic Municipality of the Brazilian Amazon Region. PLoS Negl Trop Dis. Public Library of Science; 2014;8. doi:10.1371/journal.pntd.0002665

  12. Pedrosa VL, Dias LC, Galban E, Leturiondo A, Palheta J, Santos M, et al. Leprosy among schoolchildren in the Amazon region: A cross-sectional study of active search and possible source of infection by contact tracing. Steinmann P, editor. PLoS Negl Trop Dis. Public Library of Science; 2018;12: e0006261. doi:10.1371/journal.pntd.0006261

  13. Bernardes F, Paula NA de, Leite MN, Abi-Rached TLC, Vernal S, Silva MB da, et al. Evidence of hidden leprosy in a supposedly low endemic area of Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2017;112: 822–828. doi:10.1590/0074-02760170173

  14. Cambau E, Saunderson P, Matsuoka M, Cole ST, Kai M, Suffys P, et al. Antimicrobial resistance in leprosy: results of the first prospective open survey conducted by a WHO surveillance network for the period 2009–15. Clin Microbiol Infect. 2018;24: 1305–1310. doi:10.1016/j.cmi.2018.02.022

  15. Rosa PS, D’Espindula HRS, Melo ACL, Fontes ANB, Finardi AJ, Belone AFF, et al. Emergence and Transmission of Drug-/Multidrug-resistant Mycobacterium leprae in a Former Leprosy Colony in the Brazilian Amazon. Clin Infect Dis. 2019; doi:10.1093/cid/ciz570

  16. Benjak A, Avanzi C, Singh P, Loiseau C, Girma S, Busso P, et al. Phylogenomics and antimicrobial resistance of the leprosy bacillus Mycobacterium leprae. Nat Commun. 2018;9: 352. doi:10.1038/s41467-017-02576-z