Diagnóstico diferencial das manifestações neurológicas da hanseníase

por Patrícia D. Deps,

Departamento de Medicina Social, Programa de Pós-Graduação em Doenças Infecciosas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil.

Francisco Marcos B. Cunha,

Professor de Neurologia da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil

e José Antônio Garbino.

Professor do Instituto Lauro de Souza Lima,Bauru, São Paulo, Brasil.

No Brasil, a hipótese diagnóstica de hanseníase precisa ser feita em pacientes apresentando alterações sensitivas do tipo parestesias, formigamentos, queimação e/ou déficit sensitivo correspondente à área de um nervo espessado, associado ou não a déficit motor e/ou autonômicos, com ou sem lesão de pele da hanseníase.1

Em um estudo realizado com 161 pacientes que apresentaram queixas relacionadas ao sistema nervoso periférico, as neuropatias sensitivo-motora isoladas ou múltiplas, como a síndrome do túnel do carpo, neuropatia sensitiva e polineuropatias sensitiva e sensitivo-motora representaram 68,7% dos casos incluídos em outros diagnósticos, ou seja, não tiveram diagnóstico de hanseníase. Ressalta-se a importância das neuropatias periféricas nos diagnósticos diferenciais entre hanseníase e outras enfermidades com manifestações neurológicas, ficando claro que todas as neuropatias periféricas devem ser avaliadas levando-se em conta a possibilidade de hanseníase. Nesse estudo, 16 pacientes (9,9%) foram diagnosticados com siringomielia, canal medular estreito e esclerose lateral amiotrófica. Ainda, verificaram que doenças do sistema nervoso central devem ser avaliadas no diagnóstico diferencial com a hanseníase.2

Em outro estudo, com 481 pacientes investigados com queixas neurológicas (sensitivas e/ou motoras), a hanseníase foi confirmada em 320 (66,5%). Em 161 pacientes (33,5%) não diagnosticados com hanseníase, foram encontradas enfermidades de base de padrão metabólico e carenciais, como diabetes mellitus, hipotireoidismo, uremia, amiloidose secundária, neuropatia alcoólica, neuropatias hereditárias (Charcot-Marie-Tooth I e II), insensibilidade congênita à dor, susceptibilidade à compressão, neurofibromatose tipo I, doenças inflamatórias e imunomediadas (vasculite, lúpus eritematoso sistêmico, panarterite nodosa, polineuropatia inflamatória desmielinizante crônica, gamopatia monoclonal), traumáticas e compressivas com diversas apresentações e topografia, siringomielia cervical, sequelas de mielite transversa, síndrome do desfiladeiro torácico neurogênico verdadeiro, radiculopatias cervicais e lombo-sacrais), e efeitos secundários à drogas (isoniazida, cloroquina, anti-retrovirais). Também foram encontradas doenças do neurônio motor tipo esclerose lateral amiotrófica e doenças não neurológicas, tais como tendinopatia palmar, camptodactilia e osteoartropatias.3,4

Figura 1. Doença de Charcot-Marie-Tooth tipo I (desmielinizante).

Figura 2. Camptodactilia.

Para uma investigação etiológica das neuropatias periféricas é essencial uma abordagem sequencial da anamnese e do exame físico-neurológico. A detalhada história clínica da neuropatia que está sendo investigada, bem como a história patológica pregressa e familiar dos pacientes auxiliam sobremaneira. Os exames laboratoriais, a avaliação eletroneurofisiológica e os exames de imagens são, na maioria das vezes, indispensáveis para que se conheçam os tipos de fibras nervosas envolvidas na patogênese, bem como os padrões anatômicos e temporais da doença (veja capítulos 22 e 23 sobre exames complementares da hanseníase). A avaliação histopatológica do nervo acometido pode ser necessária para esclarecimento do diagnóstico de hanseníase, principalmente quando não há diagnóstico etiológico pela baciloscopia e PCR.

Considerações sobre o diagnóstico diferencial da hanseníase neural primária com as demais neuropatias periféricas

Essa apresentação da hanseníase se caracteriza, unicamente, pela não identificação clínica e laboratorial do comprometimento cutâneo, ao menos no início, quando as anormalidades se restringem ao sistema nervoso periférico. Foi por isso denominada de hanseníase neural primária, forma neurítica pura da hanseníase ou forma neural pura da hanseníase (veja capítulo de alterações neurológicas).5

A prevalência da HNP pode ser superestimada quando a identificação de lesões de pele nos casos suspeitos não é corretamente realizada, sem a baciloscopica adequada ou biópsia de pele mal conduzida.6,7 Assim, casos com lesões cutâneas não identificadas são diagnosticados como HNP. Em oposição, casos com lesões de nervo de variadas etiologias com a não realização do exame dermatológico e quando não são considerados os respectivos diagnósticos diferenciais com a HNP, acabam sendo rotulados como hanseníase neural. Um estudo realizado com 162 pacientes com suspeita de HNP e que foram submetidos à biópsia de nervo, o diagnóstico foi confirmado em 34 casos (21%).8

As neuropatias periféricas de maior necessidade diferencial. As neuropatias mais similares

O paciente com mononeuropatia, mononeuropatia múltipla ou polineuropatia assimétrica distais precisa ser investigado, o mais amplamente possível, devendo-se sempre considerar a hanseníase como um dos possíveis diagnósticos.5,9

Mediante avaliação das funções sensitivas, autonômicas, motoras e dos reflexos profundos, deve-se identificar se a lesão tem distribuição de território cutâneo e/ou território de nervo periférico. Tratando-se de comprometimento dos ramos intracutâneos, o diagnóstico de hanseníase é praticamente certo. Quando há distribuição em território de nervo periférico, é necessário, por primeiro, identificar individualmente o nervo ou os nervos acometidos. A seguir, deve-se investigar a distribuição da lesão em cada nervo, o que pode ser feito por meio das alterações sensitivas e dos músculos comprometidos. Este é um detalhe muito importante, porque algumas neuropatias acometem os nervos em topografias preferenciais. Por exemplo, a neuropatia mais comum do nervo mediano é a síndrome do túnel do carpo, enquanto a hanseníase compromete este nervo tanto distal quanto proximalmente. Outro ponto importante a ser considerado diz respeito às fibras preferentemente envolvidas: sensitivas (táteis, térmicas e dolorosas); motoras e neurovegetativas. Mesmo nas lesões dos troncos dos nervos periféricos, a hanseníase acomete as fibras mais finas inicialmente e o envolvimento da sensibilidade vibratória e cinético postural das fibras motoras e dos reflexos profundos é mais tardio. Por outro lado, as neuropatias compressivas tendem a bloquear, primeiro, as fibras mais grossas e mais mielinizadas, tais como as das sensibilidades vibratória e cinético-postural e da motricidade.

Mononeuropatias

Há várias entidades clínicas que apresentam mononeuropatias isoladas e múltiplas (veja Quadro 2). São importantes no diagnóstico diferencial das formas paucibacilares. As mononeuropatias com maiores semelhanças com a hanseníase são: síndrome do túnel ulnar e a moneuropatia do nervo fibular no túnel retrofibular.10,11 A síndrome da perna cruzada do fibular e outras mononeuropatias que acometem nervos cutâneos podem ser confundidas com o comprometimento neural da hanseníase tuberculoide,12 porém seu caráter agudo e melhora espontânea auxiliam a diferenciá-las da neuropatia da hanseníase. Os tumores de nervo apresentam dificuldades de diferenciação com os abscessos de nervo das formas tuberculoides.8,13

Figura 3. Síndrome compressiva do nervo interósseo posterior na mão esquerda. Paciente não consegue fazer o sinal de “OK”.

A síndrome do túnel do carpo é considerada a neuropatia crônica compressiva mais comum. Leva à compressão do nervo mediano e nos casos avançados pode apresentar intensa atrofia tenar.14

Figura 4. Síndrome do túnel do carpo. Atrofia na região tenar.

Mononeuropatias múltiplas

Os quadros de mononeuropatia múltipla impõem o diagnóstico diferencial complexo com as neuropatias por vasculite (também como polineuropatia), as arterites e as neuropatias decorrentes de uma gama extensa de doenças do colágeno, primária ou secundariamente imunomediadas, como o lúpus eritematoso sistêmico e Síndrome de Sjöegren (mononeuropatia sensitiva axonal), e as infecciosas, como hepatites B e C e a infecção pelo HIV (veja Quadro 2).15

Dentre as neuropatias imuno mediadas, a neuropatia motora multifocal pode ser confundida com a neuropatia hansênica, mas o fato de preservar as fibras sensitivas é um fator diferencial importante. A Síndrome de Lewis-Sumner ou MADSAM (multifocal acquired demyelinating sensory and motor neuropathy) é uma neuropatia inflamatória mista, cujo diagnóstico é difícil, visto que também cursa com o envolvimento sensitivo. A predominância das manifestações motoras e a topografia dos achados, ou seja, o comprometimento polirradicular, ajuda no diagnóstico diferencial, assim como a presença de bloqueio de condução persistente.

A neuropatia hereditária com susceptibilidade à pressão apresenta-se como uma neuropatia assimétrica, com alentecimentos focais em sítios de compressão, que comprometem frequentemente os mesmos nervos que a hanseníase. Sua manifestação clínica inicial pode ser sensitiva. Na evolução, observa-se que o comprometimento mielínico quase sempre predomina sobre o axonal.16 O estudo da condução mostra redução da velocidade de condução em muitos dos sítios naturais de estreitamento anatômico. Na maioria das vezes, a anamnese pode revelar o caráter hereditário dessa neuropatia.

Plexopatias

Neurite Aguda do Plexo Braquial.

Conhecida também por amiotrofia neurálgica braquial ou Síndrome de Parsonage-Turner. É uma disfunção neurológica de causa desconhecida, com frequência precedida por infecções virais de vias aéreas superiores, podendo haver um mecanismo mediado pelo sistema imune contra as fibras nervosas do plexo braquial. A dor é de início súbito, intensa e aguda. Teme caráter lancinante com início frequentemente noturno, localizada na cintura escapular, em geral unilateral, podendo se irradiar para o pescoço para a face lateral do braço, durando de horas a semanas, sendo seguida por fraqueza e/ou atrofia muscular, além de anestesia parcial do membro. O prognóstico é favorável e raramente causa incapacidade disfuncional.2,17

Figura 5. Amiotrofia neurálgica braquial ou Síndrome de Parsonage-Turner. A. Vista póstero-lateral apresenta amiotrofia dos músculos elevador da escápula, supra e infra-espinhal. Paciente terá dificuldade de abduzir ombro.

Síndrome do Desfiladeiro Torácico Neurogênico

Outra plexopatia que deve ser considerada é a síndrome do desfiladeiro torácico neurogênico, também conhecida como síndrome do escaleno (cérvico-braquial). A percepção de que o comprometimento motor predomina no nervo mediano e o comprometimento sensitivo predomina no nervo ulnar facilita muito a identificação desta síndrome.18 Na região cervical os músculos escaleno anterior e médio são de grande importância pois entre eles passam os níveis de origem do plexo braquial e a artéria subclávia. Uma intensa cérvico-braquialgia é gerada quando o músculo escaleno anterior faz um pinçamento do plexo braquial e da artéria subclávia contra o músculo escaleno médio. Dor, dormência e formigamento surgem na região cervical irradiados para o ombro e membro superior principalmente pela manhã, culminando em fraqueza de músculos do braço e mão e diminuição do pulso radial ao realizar a manobra de Adson.19,20

Figura 6. Amiotrofia do primeiro espaço interósseo.

Figura 7. Ressonância nuclear magnética da coluna cervical apresentando invaginação do processo odontoide.

Polineuropatias

As polineuropatias distais devem ser consideradas no diagnóstico diferencial das formas multibacilares. São assim definidas por apresentar envolvimento difuso dos nervos periféricos e distribuição bilateral, simétrica e comprimento-dependente, ou seja, comprometendo as fibras nervosas mais distal que proximalmente. Por isso os nervos dos membros inferiores são inicialmente comprometidos.

As polineuropatias mais relevantes no diagnóstico diferencial da neuropatia hansênica são a diabetes mellitus, AIDS, lúpus eritematoso sistêmico, polineuropatia amiloide familiar, intoxicação por arsênico e outros metais, neuropatias genéticas, e a etílico-carencial. O consumo crônico de bebidas alcoólicas causa deficiência de tiamina, que em ação sinérgica pode causar dor neuropática.21 Há casos de neuropatias periféricas associadas a baixos níveis corporais de micronutrientes, principalmente cobre, ferro, selênio e zinco.22

Polineuropatia do diabetes mellitus

O diabetes mellitus é a causa mais comum de polineuropatia em geral e pode se apresentar de várias formas. Apesar de também afetar a parte motora, a polineuropatia diabética distal é predominantemente sensitiva e sua distribuição é simétrica, afetando primeiramente os segmentos distais dos nervos mais longos. O paciente queixa-se de dor em pododáctilos ou pernas, de instalação aguda, subaguda ou crônica, do tipo agudo ou em queimação, também podendo ocorrer hiperestesia cutânea e parestesias. Esses sintomas podem ser excruciantes, sem remissão e com exacerbação noturna. Além disso, pode também ocorrer desde uma diminuição das sensibilidades táctil, térmica, dolorosa e vibratória até uma completa abolição dos reflexos profundos. Clinicamente, a polineuropatia diabética difere da neuropatia da hanseníase porque é comprimento dependente, ou seja, compromete em mais intensidade as fibras longas, predominando nos membros inferiores, e o déficit motor é simétrico e difuso, sendo inicialmente subclínico.23–25 Em áreas endêmicas para a hanseníase essas doenças podem coexistir.

Polineuropatia do lúpus eritematoso sistêmico

Surge como um distúrbio sensitivo ou motor dos nervos periféricos, com duração variável, caracterizada pela simetria dos sintomas e por distribuição distal. No geral, relaciona-se com a atividade da doença. Pode corresponder a 60% das neuropatias lúpicas em doença tardia.26,27

Infecção pelo HIV e AIDS

Os mecanismos de insulto ao sistema nervoso periférico incluem a ação do próprio vírus, as alterações imunológicas, o uso das drogas antiretrovirais e as infecções oportunistas. Várias são as formas de apresentação das neuropatias periféricas ligadas à infecção pelo HIV, como, em sequência: polineuropatias inflamatórias desmielinizantes; polineuropatia sensitivo-motora distal simétrica; mononeurites e mononeurites múltiplas; polirradiculopatias progressivas; ganglioneurites e neuropatias autonômicas; neuropatias tóxicas tendo como drogas frequentemente relacionadas: ddC (zalcitabine), ddI (didanosina), d4T (estavudina), isoniazida, e metronidazol. Fraqueza neuromuscular ascendente – associada à acidose metabólica, e secundária a efeitos colaterais dos antirretrovirais, principalmente o d4T.2,28–30

Figura 8. Radiculopatia cervical. Atrofia dos músculos dos punhos e das mãos.

Figura 9. RNM (corte sagital): cérvico-artrose, retificação da coluna e canal medular cervical estreito.

Neuropatia periférica induzida por quimioterapia

A neuropatia periférica induzida por quimioterapia (NPIQ) é considerada um desafio na prática médica pelo aumento da incidência de câncer na população e o impacto dos tratamentos oncológicos aumentando a sobrevida dos pacientes. A NPIQ é uma síndrome clínica que pode se assemelhar à neuropatia hansênica. É comum nas extremidades dos membros, sendo mais comum a neuropatia “em luvas e meias”. O predomínio é de uma neuropatia sensitiva, sendo as queixas mais comuns a queimação, seguida de formigamento, dormência e parestesia, e em menor importância a dor neuropática. As queixas podem surgir durante a quimioterapia e persistir por anos.31 Em estudo de acompanhamento de câncer infantil, aproximadamente 48% das crianças tinham algum tipo de NPIQ, predominantemente sensitiva, com marcada redução da qualidade de vida.32 Os quimioterápicos mais implicados na NPIQ são: oxaliplatina, cisplatina, paclitaxel, bortezomibe, vincristina, combinação de cisplatina e paclitaxel.33

Intoxicação por metais pesados

Com a crescente contaminação ambiental a diversos metais, é importante conhecer seus efeitos tóxicos à saúde humana, e aqueles que podem resultar em quadros de neuropatias periféricas.

A intoxicação por mercúrio inorgânico pode causar distúrbios do sistema nervoso periférico e psicose. Os autores Letz e cols em 2000 demonstraram que, mesmo após 30 anos de suspensão da exposição laboral ao mercúrio, revelou-se a existência de neuropatia periférica, com tremor de extremidades, alteração da velocidade de condução motora do nervo peroneal e ulnar.34

A intoxicação pelo mercúrio orgânico (peixe contaminado) afeta a raiz dorsal e o gânglio do trigêmeo causando disfunção do SNC, polineuropatia, parestesias e tremores de extremidades. A síndrome de Minamata é uma intoxicação grave pelo mercúrio que envolve o SNC com manifestações do tipo alterações visuais, distúrbios sensoriais, ataxia cerebelar e disartria.35

As intoxicações por chumbo podem causar quadros que se assemelham à neuropatia periférica motora da hanseníase, como paralisia dos extensores das mãos e dos dedos e pé equino, com dano neural assimétrico associado a parestesias.36–38

A neurotoxicidade pelo arsênio inorgânico (arsênico é o veneno) pode causar um quadro grave de intoxicação aguda, uma a duas após a exposição, apresentando-se com náusea, vômito e diarreia. Na fase inicial se instala neuropatia sensitiva com dor neuropática e quadro de polineuropatia distal simétrica com perdas sensitivas de distribuição “em luva e em bota”. Segue-se abolição de reflexos e fraqueza acentuada, que pode progredir para quadro grave de Síndrome de Guillain-Barré símile. A exposição crônica ao arsênio inorgânico pode causar neuropatia periférica predominantemente sensitiva, pobre em sintomas, mas com diminuição na velocidade de condução na eletroneuromiografia (ENMG).39

O tálio é um elemento químico altamente tóxico utilizado como componente de pesticidas e raticidas, e foi banido de vários países para tal finalidade. Sua intoxicação é caracterizada pela alopecia (1-2 semanas após a intoxicação) e neuropatia periférica semelhante à intoxicação pelo arsênio inorgânico.36,40

Em geral a intoxicação por metais cursa com sintomas ligados ao sistema nervoso central: irritabilidade, letargia ou agitação, cefaléia e tonteiras.29,30

Síndrome de Guillain-Barré (SGB - polineuropatia desmielinizante inflamatória aguda)

A SGB cursa com fraqueza ou paralisia em mais de um membro, no geral simétrica. Em muitos casos há infiltração linfocítica neural com desmielinização e degeneração axonal posterior. Há arreflexia tendínea precoce e elevação de proteína do líquido cefalorraquidiano sem pleocitose. Em geral a fraqueza é mais evidente nas pernas e tem caráter progressivo, atingindo nervos curtos e longos. Alcança o maior envolvimento em cerca de duas semanas. Pode ser fatal pelo potencial de causar insuficiência respiratória e desregulação do sistema nervoso autônomo.2,42

Polineuropatia inflamatória desmielinizante crônica

A polineuropatia inflamatória desmielinizante crônica (PIDC) é uma doença de natureza autoimune e etiologia desconhecida. A PIDC pode apresentar-se de forma típica ou atípica, sendo que apenas metade dos doentes expressa o fenótipo típico, exibindo sintomas sensitivos e motores simétricos num período igual ou superior a oito semanas. Os restantes, com fenótipo atípico, podem apresentar sintomas predominantemente focais, sensitivos, motores, distais ou assimétricos. Como se trata de uma neuropatia inflamatória desmielinizante crônica, essa forma atípica pode ser confundida com a hanseníase.43 O diagnóstico de PIDC é feito após um quadro que se instala ao longo de um período de duração igual ou superior a 8 semanas, diferindo da polineuropatia desmielinizante inflamatória aguda (Síndrome de Guillain-Barré) a qual apresenta um início agudo, monofásico e curso autolimitado. Os doentes podem apresentar um agravamento progressivo do seu estado clínico (curso progressivo) ou podem evoluir com períodos de agravamento agudo (surtos) alternados com períodos de estabilização (remissão).44

Quadro 1. Características de intoxicação por chumbo, arsênico inorgânico, tálio e mercúrio.

Legenda. SN – sistema nervoso; DN – dor neuropática; SGB – Síndrome de Guillain-Barré; PRNP – polineurorradiculopatia; GI – gastrointestinais; SN-A – sistema nervoso autonômico; VCM – velocidade de condução motora; HgO – mercúrio orgânico; HgI – mercúrio inorgânico. Urina – teste de urina de 24 horas.

Neuropatias hereditárias (escolhidas)

Polineuropatia amiloide familiar (PAF) 1 e 3

São desordens autossômicas dominantes que incidem na faixa etária dos 30 a 40 anos.42 Os depósitos da proteína fibrilar amilóide no nervo periférico, em torno dos vasos sanguíneos e nos gânglios sensitivos e autonômicos parecem contribuir para lesão nervosa resultando numa polineuropatia sensitiva, que na fase inicial é comprimento dependente na maioria dos casos. A neuropatia periférica cursa com sintomas sensoriomotores com comprometimento de pequenas fibras, resultando em incapacidade de perceber traumas mecânicos e térmicos. Ainda, são características clínicas da PAF: uma história familiar de neuropatia e ou cardiomiopatia, dor neuropática, hipotensão ortostática, diarreia, constipação ou alternância de ritmo intestinal, disfagia, neuromiopatia e emagrecimento severo.45 Os traumas indolores podem levar a infecções crônicas e osteomielite. Não há alterações nos reflexos tendinosos profundos. A disfunção autonômica reduz a qualidade de vida. A compressão do nervo mediano por depósito amiloide pode levar à Síndrome do túnel do carpo em alguns pacientes.

Quanto à classificação genética, a PAF apresenta as formas TTR (transtirretina) V30M (mutação Val30Met) e o tipo não V30M, sendo as PAF-TTR V30M de progressão mais lenta (10-15 anos) que as não V30M.45 O sequenciamento do gene da TTR está disponível e deverá ser solicitado sempre que a neuropatia apresentar essas características.

Porfiria intermitente aguda

Desordem hereditária usualmente autossômica dominante com penetrância incompleta e ocasionalmente pode ser autossômica recessiva. Rara antes da puberdade. Resulta de falha na síntese do heme com acúmulo de porfirinas e seus precursores. A neuropatia é predominantemente motora por degeneração axonal. De início agudo ou subagudo, com astenia dos músculos proximais, mais frequente nos braços do que nas pernas. Pode ser assimétrica e focal. Reflexos tendinosos no início exaltados, mas depois podem estar ausentes. Pode acometer nervos cranianos e sensitivos. Raramente a neuropatia irá ocorrer sem que os sintomas abdominais estejam presentes: dor em cólica, náuseas, vômitos e constipação. Há hiperatividade simpática.2

Mielopatias geneticamente determinadas ou do desenvolvimento que podem simular hanseníase

Siringomielia

Na siringomielia ocorre a formação de uma cavidade no canal central da medula, com expansão desse canal, da substância medular e do tronco cerebral decorrentes às alterações na circulação liquórica. Pode ter como causa a malformação de Chiari, crescimento tumoral na medula, infecções, após traumatismos e pode não ter causa identificada (idiopática). Acomete mais a medula cervical e torácica alta gerando fraqueza segmentar assimétrica e atrofia das mãos e braços. Há lesão de fibras que irão formar os tratos espinotalâmicos laterais. Perde-se a sensibilidade térmica e dolorosa nos dermátomos correspondentes: “hipoestesia de distribuição suspensa”. Perda da força muscular nos membros superiores ou inferiores, dependendo do local de acometimento. A propriocepção e o tato estão preservados. Os sintomas dependem da extensão do envolvimento medular.2,42

Figura 10. Siringomielia. A. Atrofia dos músculos interósseos das mãos. B. Atrofia de músculos interósseos nas mãos. Mão direita com garra radio-mediano-ulnar e na mão esquerda garra radial.
Figura 11. Siringomielia. RNM corte sagital - apresenta aumento do canal medular na região cervical e torácica.

Mielopatia com amiotrofia monomélica ou Doença de Hirayama

A doença de Hirayama tem maior prevalência na Ásia, em homens jovens. Existem poucos relatos nas Américas. Nessa condição clínica ocorre um hipodesenvolvimento da dura-máter espinal, um “descolamento” dural posterior na região cervical e torácica alta durante movimentos de flexão do pescoço. Leva à compressão e isquemia focal e assimétrica dos neurônios motores no corno anterior da medula, ou seja, causam paralisias sem causar perda de sensibilidade. Esses achados clínicos diferenciam essa condição de hanseníase e da siringomielia que sempre apresentam perda sensitiva.

Estudos com Ressonância da coluna cervical em flexão podem evidenciar o plexo venoso posterior engorgitado com aumento intenso comparado à posição neutra.46

Figuras 12 e 13. Atrofia muscular juvenil distal de membro superior ou Doença de Hirayama. 12. Atrofia dos músculos dos antebraços e interósseos das mãos e palmares. 12 e 13. Mãos apresentando atrofia da região tenar e hipotênar esquerdas com com garra dos 2º aos 5º dedos.

O Quadro 2 resume os diferentes diagnósticos de doenças neurológicas de acordo com a classificação das neuropatias periféricas e as formas da hanseníase. O diagnóstico diferencial com HNP pode assumir qualquer forma de neuropatia periférica, devendo proceder a propedêutica de investigação de acordo com a abordagem das neuropatias em geral.

Quadro 2. Entidades clínicas que se apresentam com mononeuropatias isoladas e múltiplas.

Legenda. HT = Hanseníase Tubercoloide ; HDT = Hanseníase Dimorfa Tuberculoide ; HDD = Hanseníase Dimorfa Dimorfa ; HDV = Hanseníse Dimorfa Virchowiana ; HD = Hanseníase Dimorfa

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