Alterações Bucais na Hanseníase

por Patrícia Deps,

Departamento de Medicina Social, Universidade Federal do Espírito Santo

e Raquel B. Carvalho.

Departamento de Medicina Social, Universidade Federal do Espírito Santo

Cada vez mais os estudos sobre as doenças sistêmicas e bucais se entrelaçam na busca do conhecimento científico mútuo para a melhoria do diagnóstico, do entendimento das doenças, do tratamento e da preservação da qualidade de vida humana.

Já na década de 1940, nos Estados Unidos, era comum a composição de uma equipe multidisciplinar para a atenção a pessoas acometidas pela hanseníase. Ela era formada por médico cirurgião, fisioterapeuta e cirurgião-dentista. Sobre esse período, é relatada a contribuição do dentista frente a melhora clínica e, até mesmo, o desaparecimento das lesões bucais nos doentes em tratamento com uma nova droga na época, a Promin®, derivada da sulfonamida 1. No Brasil, o cirurgião-dentista foi incluído na equipe de Saúde da Família no ano de 2000 através da Equipe de Saúde Bucal (ESB) 2. Da mesma forma que se demonstrou positiva à década de quarenta, entende-se hoje a atuação multiprofissional enquanto ferramenta necessária e relevante para o diagnóstico e o tratamento eficazes da hanseníase em todo o mundo.

Com a implantação do Centro para o Avanço da Educação Interprofissional (CAIPE) no Reino Unido, em 1987, e o lançamento, em 2010, do documento “Marco para a Ação em Educação Interprofissional e Prática Colaborativa”, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu que equipes interprofissionais de atenção à saúde otimizam as habilidades por prestarem serviços integrais, centrados no paciente e de alta qualidade 3.

A cavidade bucal e o biofilme dentário são importantes fontes potenciais de micro-organismos, e o desequilíbrio dessa flora, associado a fatores do hospedeiro, pode resultar em doenças bucais ou sistêmicas 4. O estudo mundial Global Burden of Disease desenvolvido em 1990, 2010 e 2017 mostra cárie não tratada, doença periodontal grave e perda dentária entre as condições que mais impactaram a saúde da população 5,6.

O envolvimento da face e da cavidade bucal em pessoas com hanseníase vem sendo relatado tanto na arte 7, quanto na literatura médica desde a Idade Média – quando a doença era endêmica na Europa e a perda dos incisivos centrais era a ela associada 8. No que se refere à atividade odontológica sobre as alterações orofaciais, o exame clínico deve se estender além da cavidade bucal, permitindo não só o reconhecimento de sinais e sintomas oriundos de alterações do complexo buco-maxilo-facial, mas também a obtenção de informações sobre a saúde geral da pessoa 9. Esta atitude contempla os deveres fundamentais estabelecidos pelo Código de Ética Odontológica (2013) 10. Assim, em municípios endêmicos, indivíduos com lesões de pele suspeitas em áreas visíveis poderiam ser identificados como casos potenciais de hanseníase pelo cirurgião-dentista durante um exame bucal clínico de rotina, ainda que esse diagnóstico dependa de outros exames para sua confirmação 9.

Lesões orais na hanseníase parecem ser mais frequentes no teto da cavidade bucal (palato duro), mas também podem ser encontradas no palato mole, úvula, lábios, língua, gengivas e paredes faringeanas, incluindo as tonsilas 11–15. Se a doença não for tratada, mais tardiamente pode evoluir com comprometimento e destruição dos ossos da face 14. Estudos de variação da temperatura dentro da cavidade oral sugerem que a distribuição das lesões na cavidade bucal tem sido atribuída à preferência do bacilo por temperaturas abaixo de 37ºC, o que explicaria a maior frequência de lesões na linha média do palato, atravessada por duas correntes de ar, a nasal e a oral, o que o leva a permanecer de 1ºC a 2ºC abaixo da temperatura corporal 12,16,17.

Alterações orais negligenciáveis ​​foram encontradas em pessoas acometidas recentemente e com até 10 anos de evolução à doença. As alterações predominantes descritas na literatura incluíram língua fissurada (37,3%), hipoplasia circunferencial (14,0%), perda de incisivos centrais superiores (11,56%) e despapilação da língua (6,7%) 15. A razão atribuída à predominância da língua fissurada foi inespecífica, o que pode não estar diretamente relacionado à progressão da hanseníase. A perda óssea alveolar anterior superior foi encontrada por radiografias e aumentou à medida que a doença avançava. Isso pode ser explicado com base na infecção da mucosa nasal que se espalha localmente, invadindo a espinha nasal anterior e, mais abaixo, até a região do incisivo superior 15. Todavia, os estudos são apenas descritivos, sem estabelecer critério de causalidade.

Apesar de não haver nenhuma lesão oral patognomônica da hanseníase, nos estágios avançados da doença, o envolvimento na mucosa oral é visto em cerca de 20 a 60% dos casos de hanseníase virchrwiana, sendo mais raro nas formas tuberculóide e na diforma 8,18–20. Sobre tais lesões, são descritos nódulos e úlceras, perda de sensibilidade local e perfurações nasopalatinas. Problemas de fonação e regurgitação nasal de alimentos são provenientes destas alterações 12. Acredita-se que lesões na mucosa oral sejam fontes de infecção em pessoas com hanseníase, as quais podem expelir grande número de bacilos quando cospem, espirram, tossem ou falam. Uma vez liberados no ambiente, os bacilos conseguem ser viáveis por ​​até nove dias ou mais, permitindo que infecções ocorram por meio das vias respiratórias e secreções 20. Além disso, a atrofia do processo alveolar dos incisivos na maxila e a atrofia da espinha nasal anterior em esqueletos, denominada de Facies leprosa, foi um achado que pôde levar à suspeição da ocorrência de Hanseníase virchowiana 21.

A alta incidência de gengivite, periodontite e periodontoclasia na hanseníase vem sendo reportada por vários autores 18,22–24. Além do aparecimento de bolsas periodontais, inflamação e degradação dos tecidos moles, a halitose é uma consequência das doenças periodontais 25. Em pessoas com o estágio avançado da doença, o mal estado de conservação dos dentes decorre da precariedade da higiene oral consequente, principalmente, da mutilação de dedos das mãos e da função mastigatória anormal.

Na década de 1970, pesquisas apontaram mudanças nos dentes incisivos de esqueletos medievais na Dinamarca e foram descritas como Odontodisplasia virchowiana. Essa condição rara, apresentada apenas somente em casos arqueológicos, parece ser resultado de uma alteração no desenvolvimento da dentição permanente de jovens acometidos pela hanseníase wirchowiana, na qual os incisivos exibiram uma constrição radicular característica 26.

Hoje, após a introdução da PQT, o que se observa é a redução dramática da frequência de lesões orais na hanseníase 8,14,22,27. Contudo, não há um tratamento específico para elas. Sua redução ocorre com o tratamento da hanseníase , sendo as primeiras lesões a desaparecerem 14.

Há que evidenciar ainda que a face é uma região onde sinais da doença se revelam em aproximadamente 30% dos casos de hanseníase 22. Manchas hipocrômicas, lesões em placa com ou sem bordas eritematosas, madarose supraciliar, infiltração da face e lóbulos das orelhas estão frequentemente presentes. Além disso, há o comprometimento de nervos cranianos e espinhais, sendo que os mais afetados são os troncos e ramos nervosos periféricos do trigêmeo, do facial e o nervo auricular 28. Aproximadamente 5% das pessoas acometidas queixam-se de dor espontânea ou dor à palpação, especificamente na região dos nervos supra orbital, auricular e oftálmico, sem, contudo, apresentar comprometimento funcional da face 22. Assim, no exame odontológico, tais manifestações, apresentadas concomitantemente à alterações bucais, devem ser observadas pelo cirurgião-dentista encaminhando-o à suspeição da doença, reafirmando a necessidade da atenção à saúde centrada na pessoa durante a avaliação diagnóstica 9,10.

Uma aparência não estética pode estar relacionada à face de pessoas com hanseníase devido, dentre outras alterações, à deformidade do nariz em sela e à perda da espinha nasal anterior com perda dos dentes anteriores superiores. A literatura demonstra o envolvimento frequente dos incisivos centrais superiores, levando à perda de dentes, principalmente naquelas que sofrem exclusivamente de hanseníase virchorwiana 21,29 A análise radiológica do osso alveolar sugeriu a doença afetando apenas a porção óssea anterior da maxila e promovendo uma extensa perda óssea interdental, por vezes seguida de esfoliação prematura dos dentes anteriores superiores 15.

Na era da poliquimioterapia (PQT), houve drástica redução das alterações bucais em pessoas acometidas pela hanseníase, principalmente das lesões de partes moles, como as alterações clássicas em palato, incluindo sua perfuração. Em decorrência, o que mais se encontra na cavidade bucal desses pacientes é a cárie dentária, com uma média de 15 dentes atacados por cárie (CPO = 15), índice muito acima do recomendado pela Federação Dentária Internacional (FDI) e pela OMS para o ano 2000 referente à faixa de 12 anos de idade 22. Muitas pessoas com hanseníase apresentam necessidade de tratamento odontológico e de próteses dentárias superior e inferior para substituição de um ou mais dentes perdidos 22. Contudo, para além da doença, é importante perceber que a extração dentária é um reflexo da experiência de doenças bucais ao longo da vida, sobretudo cárie e doença periodontal, as quais envolvem uma etiologia complexa e fatores de risco biológicos, sociais e comportamentais, incluindo a influência da cultura e de crenças, que levam os indivíduos a optarem pela extração 30.

É importante registrar que a situação de saúde bucal na hanseníase relatada na literatura 18,22–24 não pode ser considerada pior que a da população em geral no Brasil 25,31. Melhores métodos de higiene e monitoramento regular pela equipe de saúde bucal deveriam ser adotados para aumentar a qualidade de vida dos acometidos pela doença 31. Entretanto, os serviços públicos odontológicos não têm sido capazes de acolhê-las e atendê-las de modo eficaz 22.

O aprimoramento e a oportunidade de acesso a serviços públicos de saúde/saúde bucal vêm sendo discutidos levando-se em conta a avaliação do risco social, devido a vulnerabilidade em que os cidadãos acometidos por hanseníase se encontram, além do risco biológico 32. Em vista desses aspectos, as instituições de ensino devem garantir aos acadêmicos de odontologia uma formação atenta às demandas sociais, capaz de produzir conhecimento relevante e útil, priorizando a atenção à saúde universal com qualidade e com ênfase na promoção da saúde e na prevenção das doenças 33, além da educação interprofissional e da prática colaborativa em saúde 3.

Colaboradores acadêmicos

Maria Clara de Castro Caetano

Referências

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