Transmissão zoonótica da hanseníase:

Abordagem de Saúde Única

por Patrícia Duarte Deps.

Professora TitularDepartamento de Medicina SocialPrograma de Pós-Graduação em Doenças Infecciosas, UFES. Brasil.
/11/2020

Desde 1971, pesquisadores americanos publicaram que o tatu reproduzia hanseníase se inoculado o Mycobacterium leprae experimentalmente. (1) Em 1977, na região sudeste dos EUA, foram identificados tatus da espécie Dasypus novemcinctus infectados naturalmente. (2) E logo a seguir, embora a hanseníase não seja mais endêmica nos EUA, casos autóctones de pessoas diagnosticadas com hanseníase relataram contato com tatus, sendo que nenhum outro fator de risco para a doença foi identificado. (3)

Na década de 1980, informações cruciais sobre a hanseníase vieram de estudos com tatus, dentre elas, destacam-se:

  1. Nos EUA, os tatus podem estar contaminados naturalmente pelo M. leprae. (1)

  2. Os tatus reproduzem a hanseníase, forma sistêmica e neurocutânea, por infecção experimental. (2)

  3. Nos EUA, o contato com tatus é fator de risco para desenvolver hanseníase. (3)

  4. Nos EUA, a hanseníase é uma zoonose. (4)

No Brasil, fatos semelhantes foram relatados. Estudos publicados de 2002 a 2008, descrevem a presença de DNA de M. leprae e de anticorpos anti-PGL-1 em tatus da espécie D. novemcintus do estado do Espírito Santo, região endêmica para hanseníase no sudeste do Brasil. (5–7) Nas últimas duas décadas, mais de 100 tatus da espécie D. novemcinctus e de algumas outras espécies, foram detectados com a infecção natural pelo M. leprae em outros estados do Brasil. (8)

Em 2006, foi publicado inquérito epidemiológico realizado no estado do Espírito Santo. Neste estudo, mais de 50% das 506 pessoas afetadas pela hanseníase não conheciam a fonte de bacilos, ou seja, relataram não terem tido contato conhecido com nenhuma pessoa doente. (9)

Em outro estudo do tipo caso controle foi evidenciado que 68% das pessoas afetadas pela hanseníase, assim como 48% dos controles, relataram contato direto com tatus. (10) Além deste, outros três estudos caso-controle foram realizados no Brasil e analisados em conjunto com outros três estudos norte-americanos. A estimativa (odds ratio) encontrada foi de um risco relativo de 2,60 para hanseníase em pessoas que tiveram contato direto (caçar, limpar e/ou comer) com tatu, comparada com aquelas que não tiveram. O risco relativo para contato indireto foi de 1,39. (11)

O que podemos concluir destas pesquisas?

Apesar de muitas perguntas ainda sem resposta, podemos considerar que a hanseníase é uma zoonose também no Brasil.

Zoonose é uma doença infecciosa na qual o mesmo agente etiológico causa doença no homem e em animais vertebrados. Se a hanseníase é uma zoonose nos EUA, não há por que pensar que não seja no Brasil. Apesar de o ambiente não ser o mesmo, referimo-nos aos hominídeos da espécie Homo sapiens sapiens, aos tatus que são da mesma espécie Dasypus novemcinctus, e ao microorganismo que é o Mycobacterium leprae. Uma mesma cepa do M. leprae foi encontrada nos tatus e nos seres humanos afetados pela hanseníase nos EUA. (12,13)

Nos EUA, em uma pessoa diagnosticada com hanseníase que não refere convívio com outra pessoa doente, o contato com tatu, direto ou indireto, passa a ser o fator de risco mais relevante. (13)

No Brasil, uma pessoa diagnosticada com hanseníase referiu ter tido contato com alguém doente em 44% dos casos, (9) e em 68% dos casos o contato direto ou indireto com tatus também foi relatado. (10)

Desta forma, a hanseníase no Brasil pode ter uma transmissão zoonótica. Possivelmente, o bacilo de Hansen é disseminado no meio ambiente pelo homem e pelo tatu, sendo que ambos adquirem a infecção uns dos outros e do meio ambiente (Figura 1).

Figura 1: Transmissão do Mycobacterium leprae nas Américas

M. leprae viável em humanos, tatus e meio ambiente.

Animal vertebrado – Homem – Meio ambiente (microorganismo).

Os três pilares da zoonose precisam ser caracterizados. Atualmente, não há dúvida de que o homem, o tatu e o M. leprae se relacionam, entretanto, sua origem é desconhecida. Os tatus pertencem à Superordem de mamíferos placentários chamados Xenartros (Xenarthra) e habitam o centro da América do Norte, Américas Central e do Sul há 60 milhões de anos. (14) O Homo sapiens sapiens habita as Américas há pelo menos 15-20.000 anos. (15) Possivelmente, o último a chegar no continente americano foi o microrganismo patogênico, o Mycobacterium leprae. As cepas do M. leprae se dispersaram para a Ásia, Europa, África e Américas. (12) O primeiro caso de hanseníase no Brasil foi identificado no estado do Rio de Janeiro em meados de 1600. Segundo os historiadores, a doença veio para o Brasil durante o processo de colonização dos europeus, mas houve, ainda, uma pequena contribuição dos africanos que foram traficados para o Brasil. (16)

Portanto, é razoável teorizar que o M. leprae foi trazido da Europa para o Brasil e que esses microrganismos contaminaram solo, água e vegetação e, consequentemente, infectaram os tatus. Os tatus são animais muito susceptíveis à infecção, abrigando e multiplicando o patógeno em seu corpo e se transformando em fonte ambiental do bacilo para os seres humanos. Eventualmente, quando o homem entra em contato direto com o animal contaminado, pode se infectar e desenvolver a hanseníase. O homem que desenvolve a doença pode tanto multiplicar o bacilo quanto se tornar fonte da bactéria para outros indivíduos e para o meio ambiente, o que leva à contaminação dos animais susceptíveis, como os tatus.

A participação dos tatus na endemia no Brasil é incerta. Entretanto, partindo do princípio que conceitos em saúde única tratam da proteção da saúde humana e dos animais através do equilíbrio ecológico e da preservação ambiental, não é possível desconsiderar essa fonte de bacilos para os seres humanos e para o meio ambiente.

Informar aos profissionais de saúde e à população sobre o risco de contaminação pelo M. leprae através do contato com tatus deve ser de responsabilidade da comunidade científica, dos profissionais de saúde e dos órgãos e autoridades competentes de cada área envolvida.

Referências bibliográficas

  1. Storrs EE. The nine-banded armadillo: a model for leprosy and other biomedical research. Int J Lepr Other Mycobact Dis ;39:703-14. 1971;

  2. Kirchheimer WF. Occurrence of Mycobacterium leprae in nature. Leprosy in India. 1977;49:44.

  3. Bruce S, Schroeder TL, Kenneth E, Howard R, Willians T, Wolf JE. Armadillo exposure and Hansen’s disease: an epidemiologic survey in southern Texas. 2000;43:223–8.

  4. Walsh GP, Meyers WM, Binford CH, Gerome PJ, Wolf RH, Leininger JR. Leprosy - a zoonosis. Lepr Rev. 1981;52:77–83.

  5. Deps PD, Antunes JM, Faria C, Buhrer-Sekula S, Camargo ZP, Opromola DV, et al. Research regarding anti-PGL-I antibodies by ELISA in wild armadillos from Brazil. Rev Soc Bras Med Trop. 2008; 41 Suppl 2(SUPPL. 2):73–6. Epub 2008/01/01.

  6. Deps PD, Antunes JM, Tomimori-Yamashita J. Detection of Mycobacterium leprae infection in wild nine-banded armadillos (Dasypus novemcinctus) using the rapid ML Flow test. Rev Soc Bras Med Trop. 2007; 40(1):86–7. Epub 2007/05/09.

  7. Deps PD, Santos AR, Yamashita-Tomimori J. Detection of Mycobacterium leprae DNA by PCR in blood sample from nine-banded armadillo: preliminary results. Int J Lepr Other Mycobact Dis. 2002; 70(1):34–5.

  8. Deps, P., J. M. Antunes, A. R. Santos and S. M. Collin, 2020: Prevalence of Mycobacterium leprae in armadillos in Brazil: A systematic review and meta-analysis. PLoS Negl.Trop. Dis., 14, e0008127.

  9. Deps, P. D., B. V. Guedes, J. Bucker Filho, M. K. Andreatta, R. S. Marcari and L. C. Rodrigues, 2006: Characteristics of known leprosy contact in a high endemic area in Brazil. Lepr. Rev., 77, 34-40.

  10. Deps, P. D., B. L. Alves, C. G. Gripp, R. L. Aragao, B. Guedes, J. B. Filho, M. K. Andreatta, R. S. Marcari, I. Prates and L. C. Rodrigues, 2008: Contact with armadillos increases the risk of leprosy in Brazil: a case control study. Indian J. Dermatol. Venereol. Leprol., 74, 338-342.

  11. Deps P, Antunes JMA, Collin S. Zoonotic risk of Hansen’s disease from community contact with wild armadillos: a systematic review and meta-analysis. Zoonosis and Public Health. In press.

  12. Monot M, Honore N, Garnier T, Araoz R, Coppee JY, Lacroix C, et al. On the origin of leprosy. Science. 2005; 308(5724):1040–2. Epub 2005/05/17. https://doi.org/10.1126/science/1109759.

  13. Sharma R, Singh P, Loughry WJ, Lockhart JM, Inman WB, Duthie MS, et al. Zoonotic leprosy in the southeastern United States. Emerg Infect Dis. 2015;21.

  14. Vizcaíno FS, Loughry WJ. Xenarthran biology: past, present, and future. In: Vizcaíno, SF and Loughry WF, editors. The biology of the xenarthra. Gainesville University Press of 2008. P.1-7.

  15. DNA study links indigenous Brazilians to Polynesians. Nature. http://www.nature.com/news/dna-study-links-indigenous-brazilians-to-polynesians-1.12710.

  16. Yamanouchi, A. A.; Caron, C. R.; Shiwaku, D. T. et al. Hanseníase e sociedade: um problema sempre atual. Anais Brasileiros de Dermatologia. 1993;68(6):396–404.