Prevenção de incapacidades integrada à rotina dos serviços de saúde
Realidade ou Utopia?
Marcos Túlio Raposo,
Ana Virgínia de Queiroz Caminha,
Caroline Santos Adimarães,
Jéssica Souza Britto
e Lorena dos Santos Duarte.
Durante o curso da hanseníase, os nervos periféricos, a pele e os seus anexos são comprometidos (1, 2). O dano neural pode resultar da ação direta do bacilo de Hansen ou decorrer de uma resposta imunológica contra este microrganismo, que resulta em um processo inflamatório no nervo, prejudicando o seu funcionamento normal. Ambos mecanismos comprometem as funções nervosas autonômicas (produção de suor, controle da contração dos vasos sanguíneos, por exemplo), motoras (força dos músculos) e sensitivas (temperatura, tato e dor) das áreas por eles supridas (3-5) e podem gerar incapacidades (6, 7). Algumas pessoas reagem à infecção de forma mais intensa que outras, envolvendo outros órgãos, agravando a condição das incapacidades (2, 3, 8).
A depender do tempo transcorrido, as incapacidades pela hanseníase podem estar presentes no momento do diagnóstico, que podem ser atenuadas ou permanecer estabilizadas com o tratamento específico. Em outra direção, podem piorar ou se tornar irreversíveis se não forem reconhecidas e tratadas em tempo hábil, de modo apropriado (2, 8).
As incapacidades físicas ocorrem com mais frequência em nariz, olhos, mãos e pés, comprometendo a estética e a função. Podem ser mensuradas por meio da avaliação neurológica simplificada (ANS) – um exame clínico detalhada dos nervos e de suas funções – a partir da qual é estabelecido o grau de incapacidade (GI) para olhos, mãos e pés (9), numa gradação assim definida: GI0 (zero) aponta que não há incapacidades decorrentes da hanseníase; GI1 (um) confirma que há diminuição de sensibilidade na córnea ou diminuição de força das pálpebras (sem deformidade aparente), alteração de sensibilidade palmar e/ou plantar, diminuição de força em mãos e/ou pés (sem deficiências visíveis); GI2 (dois) é aplicável a situações de comprometimentos graves, com deficiências visíveis em olhos, mãos e/ou pés causadas pela hanseníase (1).
Devido à complexidade da hanseníase, quando se fala em seu tratamento, há que se compreender que ele não envolve apenas o tratamento medicamentoso, mas um conjunto de medidas muito mais abrangentes, como a prevenção de incapacidades (PI). Esta corresponde a um processo amplo e bem estruturado que compõe a terapêutica da doença, com o objetivo de evitar a ocorrência de danos físicos, emocionais, socioeconômicos (1, 10) e demanda intervenção multiprofissional (2). Tal processo é formado por um conjunto de medidas, aplicáveis nos distintos níveis de atenção, direcionadas não apenas à pessoa afetada pela doença, mas também para o coletivo e seu entorno, com vistas a prevenir deficiências, limitações de atividade e restrições de participação (11), como por exemplo: educação em saúde; diagnóstico precoce, tratamento oportuno e regular com PQT, vigilância de contatos; detecção precoce e manejo terapêutico adequado de quadros reacionais; autocuidados; apoio à manutenção da condição emocional e integração social (1).
Após o acolhimento e admissão do paciente no serviço de saúde, ele deve ter suas necessidades identificadas e receber o suporte da equipe para o enfrentamento da doença. As ações de PI envolvem, pelo menos: o exame neurológico por meio da ANS; avaliação do GI; monitoramento da função neural durante e após a PQT(12); medidas de educação para saúde e de autocuidado; adaptação de instrumento de trabalho e para a vida diária; confecção de órteses, adaptações de calçados; e intervenções de fisioterapia e/ou terapia ocupacional (10).
Ainda que se reconheçam os avanços ocorridos nas últimas décadas quanto à terapêutica da hanseníase, a abordagem integral ainda persiste insuficiente, pois a incorporação de ações de PI, reabilitação, mecanismos de avaliação de funcionalidade e de estigma precisam ser assegurados e disponibilizados a todos os usuários por meio de acesso igualitário com tratamento oportuno (2).
Para um país responsável por 13% do total mundial de casos novos de hanseníase em 2019 (13), as ações de PI ainda não alcançaram o nível de implantação e cumprimento desejados. A realidade dos serviços de saúde é preocupante, pois o Brasil está atualmente imerso em um contexto de dificuldades múltiplas impostas pela pandemia da Covid-19 (14), (15), com uma devastadora política de redução de apoio à ciência (16, 17), subfinanciamento e desmonte crescente do Sistema Único de Saúde – SUS (18-20). Em meio a este cenário comprometedor permanece desafiador que, frente às grandes demandas gerais de usuários e à insuficiência de cobertura da estratégia saúde da família, as ações de PI sejam oferecidas satisfatoriamente e que componham a atenção integral às pessoas afetadas pela hanseníase, como proposto na Estratégia Global para a Hanseníase 2016-2020, alinhada aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (21).
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