Paleopatologia - uma ciência investigativa

por Hugo Pessotti Aborghetti,

Curso de Medicina, Universidade Federal do Espírito Santo
ORCID

e Patrícia Duarte Deps.

Professora TitularDepartamento de Medicina SocialPrograma de Pós-Graduação em Doenças Infecciosas, UFES. Brasil.
ORCID
25/08/2021

A hanseníase é uma doença infecciosa causada pelo Mycobcterium leprae e M. lepromatosis, bacilos intracelulares obrigatórios e que não crescem em meios artificiais de cultura. Os registros mais antigos desta doença, antes denominada “lepra”, são de até 600 a.C. (1). Ela é citada em diversas passagens da Bíblia Sagrada, no entanto, há evidências de que esse termo tenha sido usado para designar diversas afecções de pele e não unicamente para a hanseníase da forma que hoje se conhece, como discute Deps e Cruz (2).

Atualmente, a hanseníase é endêmica em mais de 100 países, e era uma doença comum na Europa até o final do século XVI, após o qual começou a declinar, eventualmente desaparecendo do continente. Há muitas perguntas a serem respondidas sobre a história da hanseníase na Europa, incluindo o quão comum era em cada século e as razões de seu desaparecimento. A paleopatologia é uma ciência que pode responder a essas perguntas através da análise de restos humanos. Métodos paleopatológicos podem ser aplicados ao estudo da hanseníase, já que esta doença infecciosa acomete os ossos, principalmente através de alterações características no crânio.

Os primeiros estudos paleopatológicos na hanseníase foram realizados a partir de 1944 pelo médico dinamarquês Møller-Christensen, que demonstrou um conjunto de lesões e alterações esqueléticas por ele denominado “fascies leprosa” (3). Detalhamento das alterações ósseas patognomônicas da hanseníase virchowiana, e mudança do termo para Síndrome Rinomaxilar, foram introduzidos por Anderson e Manchester (4), que descreveram as lesões no processo alveolar da maxila, na espinha nasal anterior, nas margens da abertura nasal, nas superfícies nasal e oral do processo palatino da maxila e em estruturas intranasais.


Lesões pós-cranianas (não-cranianas) também ocorrem na hanseníase. A periostite em tíbia e fíbula, e envolvimento de ossos das mãos e pés são frequentemente relatados (5). Em indivíduos não adultos, quando desenvolvem a forma multibacilar os dentes podem estar afetados causando uma condição chamada de odontodisplasia hansênica, com constrição característica dos dentes incisivos (6).

Em 2009, Monot e colaboradores (7), analisaram 400 amostras provenientes de 28 regiões do mundo, resultando em 16 diferentes subtipos de M. leprae que foram alocados em quatro grandes grupos, como segue: SPN tipo 1 (A-D), SPN tipo 2 (E-H), SPN tipo 3 (I-M), e SPN tipo 4 (N-P). Permitiu-se, então, correlacionar esses achados com os locais de procedência de cada amostra e, consequentemente, com os padrões de migração humana. Dessa forma, propôs-se uma hipótese para o surgimento e a propagação do microrganismo pelos continentes a partir de sua origem no leste africano.

Segundo esta, o surgimento do grupo SNP tipo 2 na região do chifre da África deu origem ao SNP tipo 1, que se espalhou para o sudeste asiático, e ao SNP tipo 3, que originou o grupo 4 e, posteriormente, seguiu para o Oriente Médio e Europa, tendo este último grupo permanecido no norte e oeste africano. Ainda, aponta-se a Rota da Seda como responsável pela hanseníase na China, uma vez que o subtipo encontrado nesse país, na Coreia e no Japão é o K (SNP tipo 3), diferentemente do SNP tipo 1 presente no sudeste asiático, marcando, assim, uma dupla rota de introdução do patógeno na Ásia. Por fim, a introdução do mesmo nas Américas pela imigração europeia e pelo tráfico de pessoas do continente africano é corroborada por dois grandes fatores: a presença marcada do subtipo 1 tanto nas Américas, como na Europa, e do subgrupo SNP tipo 4 no oeste africano e na América do Sul; e a ausência de sinais da doença em solo Americano antes do período colonial.

Schuenemann et al (8), por sua vez, ao comparar o genoma do M. leprae encontrado em cinco esqueletos datados do período medieval com os de sete obtidos de pacientes contemporâneos e quatro referências genômicas disponíveis (TN, Thai53, NHDP63 e Br49923), demonstrou que todos os indivíduos correspondiam a um dos quatro tipos já descritos, exceto dois. Provenientes da China e da Nova Caledônia, essas amostras modernas correspondem ao SNP tipo 3K, considerados pertencentes a um novo ramo da árvore filogenética da micobactéria, nomeado ramo 0. Dessa forma, sugere-se a existência de 5 ramos, aos quais pertencem os 16 subtipos descritos por Monot et al (7,9).

Além da bioarqueologia, os aspectos paleopatológicos clínicos auxiliam na identificação de hanseníase em esqueletos, e a solucionar questões relacionadas com a história natural da hanseníase, como as causas do declínio desta doença na Europa no final da Idade Média.

A principal teoria que versa sobre o desaparecimento da hanseníase na Europa o associa com o crescimento dos aglomerados urbanos e o aumento da incidência de tuberculose, ambos causados por micobactérias (10,11). Em 2013, Hohmann & Voss-Böhme (12), construíram um modelo matemático que explorou as consequências epidemiológicas dessa infecção dual e concluíram que o desaparecimento da hanseníase pode, sim, ser explicado pela coinfecção.

Assim como seu surgimento e os possíveis caminhos que o M. leprae tomou para espalhar-se pelo mundo, acredita-se que seu desaparecimento do território europeu pode ser explicado pela Rota da Seda (7), responsável pela introdução da Yersinia pestis no continente. Essa bactéria foi responsável pela peste bubônica, que assolou a Europa entre os séculos XIV e XIX, e dizimou cerca de um terço de sua população no período concomitante com o desaparecimento da hanseníase (13), iniciada no século XV, podendo, inclusive, ter agido sinergicamente com a infecção pelo M. tuberculosis para o declínio da hanseníase no continente.

Outra importante teoria associa o declínio da hanseníase na Europa, no final do período medieval, à diminuição da temperatura média do continente, uma vez que até mesmo pequenas mudanças podem resultar em importantes perdas na atividade metabólica dos bacilos, dificultando, inclusive, sua multiplicação (14). De fato, os registros desse evento coincidem com a existência comprovada da Pequena Era do Gelo, cuja manutenção ocorreu pela presença de grandes camadas de gelo oceânico e sua influência sobre as temperaturas costeiras e continentais. Esse fenômeno foi resultado de sucessivos abruptos picos de frio e gelo polar entre 1275 e 1300 DC, mantidos nos 300 anos seguintes, com marcadas intensificações entre 1430 e 1455 DC (15).

Visto isso, observa-se que a paleopatologia teve papel importante na descrição e avaliação das características evolutivas relacionadas ao patógeno e à doença causada pelo mesmo. Ela pressupõe uma relação direta entre as lesões esqueléticas observadas e a saúde do indivíduo no período de sua morte. Dessa forma, sua atuação conjunta com a paleoepidemiologia é de suma importância para auxiliar no maior entendimento da evolução e do declínio da hanseníase, bem como para melhor entender seu comportamento atual.

Referências

  1. Eidt LM. Breve história da hanseníase: sua expansão do mundo para as Américas, o Brasil e o Rio Grande do Sul e sua trajetória na saúde pública brasileira. Saúde E Soc. agosto de 2004;13(2):76–88.

  2. Deps P, Cruz A. Why we should stop using the word leprosy. Lancet Infect Dis. abril de 2020;20(4):e75–8.

  3. Christensen VM-. Bone Changes in Leprosy. Wright, Bristol; 1961. 84 p.

  4. Andersen JG, Manchester K. The rhinomaxillary syndrome in leprosy: A clinical, radiological and palaeopathological study. Int J Osteoarchaeol. 1992;2(2):121–9.

  5. D. Donoghue H, Michael Taylor G, A. Mendum T, R. Stewart G, Rigouts L, Y-C. Lee O, et al. The Distribution and Origins of Ancient Leprosy. In: Ribòn W, organizador. Hansen’s Disease - The Forgotten and Neglected Disease [Internet]. IntechOpen; 2018 [citado 19 de agosto de 2021]. Disponível em: https://www.intechopen.com/books/hansen-s-disease-the-forgotten-and-neglected-disease/the-distribution-and-origins-of-ancient-leprosy

  6. Danielsen K. Odontodysplasia leprosa in Danish mediaeval skeletons. Tandlaegebladet. junho de 1970;74(6):603–25.

  7. Monot M, Honoré N, Garnier T, Zidane N, Sherafi D, Paniz-Mondolfi A, et al. Comparative genomic and phylogeographic analysis of Mycobacterium leprae. Nat Genet. dezembro de 2009;41(12):1282–9.

  8. Schuenemann VJ, Singh P, Mendum TA, Krause-Kyora B, Jäger G, Bos KI, et al. Genome-wide comparison of medieval and modern Mycobacterium leprae. Science. 12 de julho de 2013;341(6142):179–83.

  9. Monot M, Honoré N, Garnier T, Araoz R, Coppée J-Y, Lacroix C, et al. On the origin of leprosy. Science. 13 de maio de 2005;308(5724):1040–2.

  10. Donoghue HD. Tuberculosis and leprosy associated with historical human population movements in Europe and beyond - an overview based on mycobacterial ancient DNA. Ann Hum Biol. março de 2019;46(2):120–8.

  11. Donoghue HD, Marcsik A, Matheson C, Vernon K, Nuorala E, Molto JE, et al. Co-infection of Mycobacterium tuberculosis and Mycobacterium leprae in human archaeological samples: a possible explanation for the historical decline of leprosy. Proc Biol Sci. 22 de fevereiro de 2005;272(1561):389–94.

  12. Hohmann N, Voss-Böhme A. The epidemiological consequences of leprosy-tuberculosis co-infection. Math Biosci. fevereiro de 2013;241(2):225–37.

  13. Achtman M, Morelli G, Zhu P, Wirth T, Diehl I, Kusecek B, et al. Microevolution and history of the plague bacillus, Yersinia pestis. Proc Natl Acad Sci U S A. 21 de dezembro de 2004;101(51):17837–42.

  14. Marcolefas E, Leung T, Okshevsky M, McKay G, Hignett E, Hamel J, et al. Culture-Dependent Bioprospecting of Bacterial Isolates From the Canadian High Arctic Displaying Antibacterial Activity. Front Microbiol. 9 de agosto de 2019;10:1836.

  15. Miller GH, Geirsdóttir Á, Zhong Y, Larsen DJ, Otto-Bliesner BL, Holland MM, et al. Abrupt onset of the Little Ice Age triggered by volcanism and sustained by sea-ice/ocean feedbacks: LITTLE ICE AGE TRIGGERED BY VOLCANISM. Geophys Res Lett. janeiro de 2012;39(2):n/a-n/a.