O passado presente: perspectivas do tombamento de remanescentes da hanseníase em São Paulo

por Amanda Walter Caporrino,

Historiadora formada pela Universidade de São Paulo (USP) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Econômica da USP.

e Adda Alessandra Piva Ungaretti .

Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade de São Paulo (USP).
14/09/2021

Em 2016, a rede paulista de profilaxia e tratamento da hanseníase foi reconhecida como patrimônio cultural pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). A decisão do tombamento baseou-se em estudos técnicos, que evidenciaram a representatividade desse conjunto por trazer à tona diversas questões pretéritas e atuais.

Conforme esses estudos, a rede foi implantada seguindo o modelo hospitalar de isolamento adotado no final do século XIX em vários lugares do mundo. No Brasil, projetos desse tipo surgiram na década de 1920, num contexto eugenista e higienista, no qual a internação compulsória foi imposta pela Lei nº 2.169, de 27 de dezembro de 1926.

Em São Paulo, o marco foi o Decreto 5.027 de 16/05/1931, que determinou a formação do denominado “tripé profilático”, composto por:

O decreto também determinou a construção de cinco asilos colônia: Santo  ngelo (1928, Mogi das Cruzes), Padre Bento (1931, Guarulhos), Pirapitingui (1931, Itu), Cocais (1932, Casa Branca) e Aimorés (1933, Bauru), cuja lógica de distribuição territorial pautou-se na malha ferroviária existente. 

Além dos pavilhões de tratamento tipo “carville” e das residências, os asilos colônia foram idealizados para funcionar como mini cidades vigiadas, sendo formados pelas zonas sadia, intermediária e doente. Esta contava com espaços e edificações que atendiam a necessidades daqueles que lá viviam reclusos: desde o fornecimento de mercadorias e serviços (fábricas, armazéns, cabeleireiro) até lazer (teatro, cassino, campo de futebol) e assistência religiosa (igrejas e templos).

Asilo Cocais, em Casa Branca. Passadiço dos pavilhões de tratamento e alojamento.Foto: Adda Ungaretti, 2015.

Os internos assumiam nova identidade e lidavam social e emocionalmente com a realidade do confinamento. Separados de suas famílias, tinham “contato” restrito com o mundo além-muros no parlatório (corredor cercado e vigiado) e eram submetidos a tratamentos experimentais dolorosos e condições precárias. 

Na maioria dos casos, a vida asilar iniciou-se na entrada forçada pela portaria e findou com o sepultamento nos cemitérios. Com a extinção da compulsoriedade, em 1962, grande parte dos internos sobreviventes decidiu permanecer nos asilos porque não tinham mais contato com familiares nem para onde ir. Os ex-pacientes e os descendentes que ainda vivem nos hospitais instalados nos complexos asilares enfrentam a constante ameaça do despejo numa situação límbica que gera transtornos para as partes envolvidas.

Asilo Aimorés, em Bauru. Portaria. Foto: Amanda Caporrino, 2015.

Essas questões são evidentes ao enfocarmos a situação dos filhos dos confinados. Nem sempre os menores eram asilados junto com os familiares, e, quando acontecia, os contatos ocorriam somente com a permissão e em datas determinadas. Já as crianças nascidas no asilo eram imediatamente retiradas após o parto e encaminhadas aos preventórios para se evitar o contágio. A maioria delas nunca mais reencontrou suas famílias.

Os estudos de tombamento identificaram o Preventório Santa Terezinha em Carapicuíba e o Preventório de Jacareí. Essas instituições impunham medidas disciplinantes às crianças e visavam a desvincular os laços “estigmatizados”, apagando o seu passado para facilitar a reinserção social. 

Preventório Santa Terezinha, em Carapicuíba. Foto: Amanda Caporrino, 2013.

Sobre os dispensários, por não se tratarem de construções especificamente planejadas para a rede e diante das escassas referências, não indicamos o tombamento de exemplares.

O tombamento estadual (com exceção do Asilo Padre Bento) seguiu critérios estabelecidos pelos estudos técnicos para a seleção de edificações e definição de diretrizes com vistas a preservar-se a leitura da rede: 1) inexistência nos demais conjuntos arquitetônicos remanescentes; 2) excepcionalidade arquitetônica ou histórica; 3) relevância para o funcionamento da rede; 4) grau de conservação.

Em relação aos cemitérios, o estado de conservação foi o principal critério adotado para a seleção, visto que o instrumento de preservação do tombamento baseia-se na materialidade do bem. Nesse sentido, indicou-se o Cemitério São José (Asilo Pirapitingui) por ainda encontrar-se inserido nos limites do atual complexo hospitalar e apresentar o maior índice de identificação nas sepulturas. Os demais cemitérios foram indicados para reconhecimento de Lugar de Interesse Cultural diante da relevância desses espaços na preservação dessa memória e nos processos de reparação de danos. 

Asilo Pirapitingui, e Itu. Cemitério São José. Foto: Amanda Caporrino, 2021.

O reconhecimento desses exemplares como patrimônio cultural de São Paulo significou lidar com uma memória sensível e (re)negada, cuja compreensão é ainda bastante permeada por preconceitos e exclusão. Representou, assim, uma ampliação do conceito de bem cultural que inseriu o próprio Estado em um debate crítico acerca de suas responsabilidades perante políticas públicas do passado e do presente. 

Para saber mais: grande parte dos estudos de tombamento foi publicada no artigo Remanescentes de um passado indesejado: estudos de tombamento dos exemplares da rede paulista de profilaxia e tratamento da hanseníase na Revista do Centro de Preservação Cultural da USP, disponível no link abaixo.