A Marca da Lepra

por Faustino Pinto

Vice-Coordenador Nacional do MORHAN – Movimento de reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase
10/08/2020

Antes de ser conhecido por uma patologia, nasci e me batizei com o nome de Francisco Faustino Pinto e permaneci assim até os meus 18 anos de idade. Nesse momento, minha alcunha mudou: recebi um novo nome ao ser diagnosticado com hanseníase. Me chamaram de Leproso.

Percebi que naquela unidade de saúde era só mais um número em um prontuário médico. Ao passar pelas portas daquele posto de saúde, tinha a impressão de estar passando por um ritual de morte em vida, algo tão marcante no século 15, mas o ano era 1989. Quando ouvi a palavra hanseníase pela primeira vez não me parecia algo ruim. O médico que suspeitou da doença havia me dado informações objetivas e eu compreendi, fui ao outro serviço de saúde com o entendimento do que significava a patologia, e que deveria tomar os medicamentos e ter os cuidados necessários para ficar curado. Estava de posse de todas as informações de que precisava, sem medo.

Me encaminharam para uma enfermeira que dava as boas e as más notícias, ela me fez uma pergunta que ao mesmo tempo respondeu: “Você sabe o que é Hanseníase? É a mesma Lepra”. Não entendi por que ela me trouxe tal informação adicional. Uma atitude que parecia ter a intenção de intimidar, uma tentativa abusiva de me fazer lamentar o que se passava comigo, aquela ação traduzia qual seria o meu lugar na sociedade a partir daquele momento.

O que veio em seguida me apavorou. A profissional de saúde seguia com o que ela achava ser um atendimento humanitário e de qualidade, dizia: “Você não pode deixar de tomar os remédios, não pode faltar as consultas ou abandonar o tratamento, porque você pode ficar deformado, essa doença cai pedaços”. Informações que eram importantes, sim, para o meu tratamento, mas jamais ditas daquela forma e naquele contexto.

Aquele dia havia começado como uma grande alegria para mim, porque o diagnóstico da doença significou o fim de uma peregrinação de nove anos em que eu passei por muitos médicos e tratamentos e nenhum diagnóstico correto. Mas esse alívio e alegria iniciais, em questão de horas se transformaram em algo assustador, um pesadelo. As informações acerca da patologia hanseníase, que tinham finalmente esclarecido sobre minha situação e me deixado tranquilo momentos antes, viraram algo bizarro, uma vida sem muitas perspectivas. Esse é o poder destruidor de uma única palavra, Lepra, um poder devastador na vida de um indivíduo. Conheço relatos onde pessoas apenas pelo fato de ouvi-la entraram em pânico, ficaram deprimidas, se isolaram.

Me recordo de um episódio muito marcante, estava em casa doente e não pude ir ao posto de saúde pegar os meus medicamentos, pedi a minha mãe que fosse até lá. Ao chegar, minha mãe esqueceu o nome da doença. Como eu tenho desvio de septo nasal e naquela época sagrava bastante, era disso que ela lembrava, então disse: “Vim pegar os medicamentos do meu filho, ele tem um problema no nariz”. A resposta dada a minha mãe veio rápida e cruel “Aqui não tratamos de doença de nariz, o que seu filho tem é lepra”. A sala de entrega de medicamentos tinha várias pessoas, minha mãe ficou muito constrangida. Parecia que a profissional de saúde tinha uma necessidade imensa em gritar tão fortemente a palavra LEPRA, e conseguiu fazer minha mãe voltar pra casa muito triste.

Falar de Lepra é condicionar as nossas vidas a um passado cruel que insiste em nos rodear, é falar de exclusão, confinamento, de famílias separadas e vidas destroçadas, é viver apegado a livros antigos e citações que não há sentindo nem razão em existir nos dias atuais, é um apego muito forte a esse passado. Há quem justifique o uso do termo lepra em virtude do que consideram uma dificuldade de entendimento da população sobre o termo hanseníase ou sugerindo que palavra hanseníase diminui a importância da doença. Eu não concordo com nenhuma dessas afirmações, a vida é um eterno aprendizado, então os membros da comunidade podem aprender e aprender de novo e de novo. Precisamos de profissionais que tenham empatia pela dor das pessoas atingidas pela hanseníase, que dispensem um pouco do seu tempo para ajudar nesse entendimento. A palavra hanseníase, se acompanhada de informações detalhadas sobre a doença, não diminui a importância dos danos causados pela patologia. Mas a outra palavra, a Lepra, mesmo se acompanhada das melhores intenções, é capaz de causar estragos tão grandes quanto os que a própria doença produz – porque é uma palavra que carrega desinformação desde o princípio de seu uso.

Algumas pessoas dizem que devemos usar o termo lepra porque é bíblico, e que devemos seguir o que Deus nos ensinou. Sendo assim, será que não temos pecadores entre os “puros’? Segundo a Bíblia é pecado, por exemplo, trabalhar aos Sábados, ter uma tatuagem, cortar o cabelo/fazer a barba, fazer sexo antes do casamento, comer carne de porco, se divorciar, falar sem autorização do marido,usar roupas de diferentes tecidos, comer frutos do mar, entre outros.

É fato que essas proibições não encontram mais sentido em nossa sociedade, como também não vejo sentido em se referir a uma doença lançando mão de uma terminologia ultrapassada, vinda de uma língua “morta”...

Concordar com o termo Lepra como significado de doença é aceitar pra sua vida o peso dos seus significados, é se declarar impuro, imundo, é admitir que ser atingido pela hanseníase foi fruto de desobediência divina, dos seus pecados, das suas falhas enquanto ser humano. É trazer pra si as dores do mundo, enquanto na verdade você só foi vítima de negligência. Negligência do poder público que deveria prover cuidados e uma saúde pública fortalecida, negligência em consequência da fome, da miséria, de governos que nos invisibilizam, que nos fazem pedir aos Deuses que nos enxerguem, já que os homens nos esquecem.

Na Bíblia, o termo Lepra significa, sujeira, descamação, castigo divino, vícios, impureza, podridão e outros sinônimos que não se aplicam à doença de Hansen. Por conta disso, em 1976, o médico e professor de Dermatologia da Escola Paulista de Medicina Abrahão Rothenberg propôs a mudança de terminologia de lepra para hanseníase. Houve uma grande resistência de adesão à nova nomenclatura advinda dos profissionais de saúde. No entanto, não havia resistência da comunidade, como não há até os dias atuais. Em 1995, com o apoio do MORHAN – Movimento de Reintegração das pessoas atingidas pela Hanseníase, o então presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso assina a lei 9010 que proíbe o uso do termo lepra como significado de doença.

A partir dessa lei, iniciou-se um duro e contínuo processo de reeducação da população no Brasil. Infelizmente, ainda temos alguns poucos resistentes a essa nomenclatura, e ainda nos causa espanto quando esses são profissionais de saúde, que insistem na cultura do medo como forma de adesão ao tratamento, se apegam a uma palavra com um significado que não traduz os sinais e sintomas da doença de Hansen. Entendo que as mudanças não são fáceis, que requerem reflexão, tempo e vontade de mudar. Mas é preciso mudar. Já se passaram mais de 2000 anos e muita coisa mudou, trabalhamos aos sábados, temos tatuagens, cortamos o cabelo, fazemos a barba, sexo antes do casamento, comemos carne de porco, nos divorciamos, mulheres não precisam de autorização do marido para falar, usamos roupas de diferentes tecidos e cores, comemos frutos do mar, então por que essa insistência em usar essa nomenclatura, dessa língua morta, desse livro antigo, que te marca, te discrimina e te coloca em uma posição a margem da sociedade? Não existe dignidade no termo lepra, não existe beleza, reflitam e se libertem dessa prisão linguística, permitam-se, abram a mente, deixem-na livre, é inevitável... O novo sempre vem.

Sobre o autor

Francisco Faustino Pinto

Vice-Coordenador Nacional do MORHAN – Movimento de reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase

Ativista LGBTQI+

Criador e blogueiro no canal Vozes Coloridas