Implicações da pandemia de COVID-19 para a segurança alimentar e nutricional de pessoas afetadas pela hanseníase

por Camila Silveira Silva Teixeira,

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde na Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil.
ORCID

e Marcos Tulio Raposo.

Departamento de Saúde I da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Jequie, Bahia, Brasil.
ORCID
10/08/2021

A pandemia da COVID-19 gerou uma ampla crise sanitária com repercussão econômica mundial, afetando aspectos políticos e sociais de países de média e baixa renda, como o Brasil, cujo cenário socioeconômico foi agravado em decorrência de déficit no crescimento econômico e políticas de austeridade fiscal1. As medidas de restrição à circulação de pessoas e de distanciamento social, necessárias para conter a transmissão, provocaram impacto na economia, comprometeram a geração e o acesso à renda2. Sob o ponto de vista sanitário e econômico, a população mais vulnerável não foi assistida adequada, nem oportunamente, com ações governamentais efetivas que favorecessem adesão a tais medidas3. As restrições orçamentárias enfrentadas pelas classes economicamente mais vulneráveis determinaram dificuldades para assegurar as necessidades básicas, principalmente o acesso à alimentação4.

Pessoas com perdas generalizadas de renda tendem a buscar alternativas para mitigar a fome com adoção de práticas inadequadas, como hiperdiluição dos alimentos, redução do tamanho das porções e, consequentemente, dos nutrientes ingeridos, restrição de consumo de alimentos saudáveis e aumento do consumo daqueles mais baratos e pouco nutritivos. Assim, a pandemia da COVID-19 tem sido uma ameaça para a segurança alimentar e nutricional (SAN) por incrementar o quantitativo de expostos a condições que violam o direito humano à alimentação adequada. O não atendimento às condições básicas de alimentação é chamado de insegurança alimentar (IA), classificada como: IA leve – refere-se à preocupação com a quantidade de alimentos em futuro próximo e à qualidade nutricional; IA moderada – redução da quantidade de alimentos disponíveis para os adultos da família; IA grave – restrição da quantidade de alimentos disponíveis para crianças e adultos, e sensação de fome entre os membros do domicílio5.

Nos últimos anos houve aprofundamento das situações de pobreza e vulnerabilidade social vivenciadas por muitas famílias brasileiras. Em dezembro de 2020, de 211,7 milhões de brasileiros, 116,8 conviviam com algum grau de IA. Destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente (IA moderada e grave) e 19 milhões enfrentavam a fome (IA grave). Este cenário resultou do desmonte de políticas e sistemas de proteção social, especialmente no setor saúde6. Tais dificuldades são potencializadas em grupos socialmente mais vulneráveis, sobretudo aqueles que, no período pré-pandemia, já enfrentavam situações de IA7 que, no campo da hanseníase, reflete a vulnerabilidade nutricional deste coletivo8.

O estado de IA contribui para piora do estado nutricional, o desenvolvimento e a evolução de doenças. Do mesmo modo, a presença de doenças pode refletir piora do estado nutricional9. Deste modo, sendo a pobreza um determinante da hanseníase, os hábitos alimentares inadequados somados às demais condições presentes atuam como agravantes das condições de saúde. Estudos realizados em Bangladesh e Brasil evidenciaram que condições de baixa ingestão energética total, menor variedade de nutrientes e ausência de estoques de alimentos nos domicílios foram fatores que contribuíram para a hanseníase8,10,11. Além disso, as sequelas provocadas pela doença, como incapacidades físicas, estigma e preconceito, podem expor os indivíduos à maior vulnerabilidade, impactos diretos no acesso ao trabalho e renda10, comprometendo a sustentabilidade econômica do domicílio, dificultando, entre outros, o acesso à alimentação adequada qualitativa e quantitativa, resultando em IA ou piorando esta condição5.

Tomando-se como referência a condição pré-pandemia da COVID-19, a prevalência de IA já era maior na população acometida por hanseníase que na população geral8. É necessário destacar que a emergência e a disseminação da pandemia intensificaram os problemas gerados pela IA7, especialmente para populações vulneráveis, sinalizando para possível aumento de situações de fome. Para responder a esta demanda são necessárias iniciativas e políticas que garantam a segurança alimentar e contemplem ações articuladas de alimentação (disponibilidade, produção, comercialização e acesso aos alimentos) e nutrição (boas práticas alimentares e adequado aproveitamento dos nutrientes), como direito humano. Neste sentido, destaca-se que a Estratégia Nacional para Enfrentamento da Hanseníase, na sua abordagem terapêutica, não contempla o estabelecimento de ações voltadas à atenção nutricional. Recomenda-se discussão sobre implantação e manutenção de medidas efetivas de políticas públicas que assegurem os direitos humanos (incluindo a alimentação adequada), assistência social e transferência de renda para minimizar a vulnerabilidade à fome entre as pessoas de classes sociais mais vulneráveis, sobretudo aquelas afetadas pela hanseníase.

Referências

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