Hanseníase e Saúde Mental

Uma abordagem multiprofissional

Vinícius de Pádua Sanders Medeiros,

Acadêmico de Medicina
Universidade Federal do Espírito Santo

Leonardo Fabem Moreira,

Acadêmico de Medicina
Universidade Federal do Espírito Santo

Maria Carmem Viana,

Professora AdjuntaDepartamento de Medicina SocialUFES, Brasil.

e Patrícia Duarte Deps.

Professora TitularDepartamento de Medicina SocialPrograma de Pós-Graduação em Doenças Infecciosas, UFES. Brasil.

A hanseníase e seu histórico milenar de medo e discriminação têm consequências que se estendem muito além das sequelas físicas, comumente causando sofrimento, comprometendo as relações sociais e o bem-estar psicológico das pessoas afetadas, e demandam um manejo clínico multidisciplinar e multiprofissional (1).

Na década de 1980, durante a implantação da poliquimioterapia (PQT) para o tratamento da hanseníase, foram publicados os primeiros artigos científicos apontando a necessidade de atenção especial à saúde mental das pessoas com hanseníase (2,3). As alterações psíquicas estão intimamente relacionadas ao medo de sofrimento físico e de desfiguração do corpo, e ao estigma social relacionado à hanseníase. Este último, pode gerar um processo de distanciamento social e enfraquecimento dos laços afetivos com os familiares e amigos, e reduzir a oportunidade futura de ampliação de redes sociais (4). Além disso, pode restringir drasticamente o desenvolvimento pessoal e ocupacional e o desenvolvimento de relações interpessoais e a decorrente geração de descendentes. O diagnóstico de hanseníase costuma ocasionar apreensão e ansiedade no paciente e em seus familiares, além da sensação de impotência para lidar com uma doença contagiosa e marcada historicamente por preconceito e exclusão. Assim, o diagnóstico da doença pode representar importante fator de risco para a eclosão de transtornos mentais em indivíduos com predisposição biológica e o decorrer do seu curso clínico pode perseverar estressores crônicos, contribuindo negativamente para a recuperação e manutenção do bem-estar psíquico (5).

O próprio diagnóstico de hanseníase, assim como ocorre com outras doenças tropicais negligenciadas no Brasil, pode, ainda, significar para o indivíduo a concretude do abandono e marginalização por parte do poder público e da sociedade (6).

A avaliação adequada do estado mental no contexto de vida da pessoa afetada pela hanseníase é fundamental para identificar sua compreensão acerca da doença e perspectivas de tratamento, bem como seus medos e expectativas, levando em consideração o estágio clínico em que a doença se encontra e além de as maneiras de elaboração e aceitação da doença. A avaliação psiquiátrica deve ser constante, em compasso com o acompanhamento clínico, pois a comorbidade contribui para a redução da autoconfiança e, principalmente, do autocuidado, podendo interferir de forma deletéria na evolução da doença (8). Além disso, estados depressivos e ansiosos podem comprometer ainda mais a capacidade interativa e o bem-estar social desses indivíduos (9). No entanto, o diagnóstico e tratamento de transtornos mentais são dificultados por barreiras de infraestrutura, como a baixa disponibilidade e a dificuldade de acesso a serviços públicos de saúde mental e a valorização dos sintomas físicos em detrimento dos sintomas psicológicos e comportamentais (4). Assim, na comorbidade de hanseníase e transtornos mentais, se condensam duplamente a discriminação, o preconceito e a estigmatização que marcam, historicamente, a ambos.

Transtornos mentais comuns são mais prevalentes em pessoas afetadas pela hanseníase do que na população geral, tendo sido identificados em 41,9% (6) e em 70,4% (7) de duas amostras clínicas, sendo mais frequentes entre pacientes do sexo feminino. A depressão é o transtorno mental mais frequentemente diagnosticado entre as pessoas afetadas pela hanseníase, sendo mais prevalente quando há deformidade física, isolamento social e incapacidade para atividades da vida diária. Transtorno dismórfico corporal também tem sido observado entre pacientes com maior incapacidade e entre aqueles que desenvolveram deformidades físicas (4). Elevadas taxas de tentativas de suicídio e suicídio também foram relatadas (2,9). Sintomas de ansiedade estão presentes desde os estágios clínicos iniciais, tendo em vista as preocupações e dificuldades associadas ao diagnóstico da hanseníase (10). Alterações específicas do humor, como tristeza, apatia, baixa autoestima e autoimagem negativa, além de sentimentos de solidão, também são frequentes entre as pessoas afetadas pela hanseníase. Comportamentos autodestrutivos podem estar associados a sentimentos de culpabilidade, angústia ou vergonha, e a desejos de autopunição e de escape dos problemas do cotidiano impostos pela doença (10). A falta de conhecimento sobre a hanseníase, pela população geral, produz uma concepção social errônea acerca da doença, gerando ações discriminatórias que são a gênese de comportamentos negativos de redução da autoestima, da autoconfiança, do respeito próprio, da capacidade cooperativa, da oportunidade de conseguir emprego, (8). Todos esses fatores mostram-se, ainda, amplificados na presença de deformidades físicas. (11)

Efeitos adversos da poliquimioterapia (PQT) podem, também, ter impacto deletério sobre a saúde mental dos pacientes com hanseníase. A dapsona pode promover manifestações neuropsiquiátricas como psicose, cefaleia e fadiga (12). A prednisona em altas doses, utilizada por longo tempo para tratamento das reações hansênicas, pode desencadear transtornos mentais, como alterações do humor, com agitação psicomotora, irritabilidade e insônia e, em casos mais graves, depressão com sintomas psicóticos. Além disso, a clofazimina causa alterações na coloração da pele (4), que são reconhecidas, em várias comunidades, como indicadores de tratamento e, portanto, de doença. Embora tal coloração ferruginosa seja temporária, pode causar medo e apreensão nos pacientes, familiares e contatos sociais, podendo causar um forte impacto na autoestima e nas relações sociais.

A abordagem multiprofissional dos pacientes com hanseníase, incluindo cuidados em saúde mental, é fundamental para garantir o diagnóstico precoce, o tratamento adequado e a reabilitação psicossocial assistida das pessoas afetadas pela hanseníase, por meio de um atendimento psiquiátrico compreensivo (8).

Algumas abordagens foram adotadas com o intuito de amenizar o sofrimento psíquico das pessoas com hanseníase. Dentre elas, a promoção de oficinas terapêuticas (1) mostrou-se eficaz para a redução dos sintomas depressivos e para a melhoria da qualidade de vida. Assim, as oficinas buscaram o resgate da vivência e da autonomia dos pacientes, visando o enfrentamento do estigma, a recuperação da autoimagem e a ressignificação da história de vida. Tratamentos farmacológicos utilizando medicamentos psicotrópicos para transtornos de ansiedade e depressão podem ser prescritos e a evolução clínica, acompanhada, por profissionais capacitados. Intervenções cirúrgicas (10) reconstrutivas foram significativamente efetivas para reduzir o sofrimento mental e o estresse psicológico das pessoas afetadas pela hanseníase com deformidades físicas instaladas. Tais cirurgias ajudam a recuperar aspectos funcionais e estéticos, além de reduzir os indicadores explícitos da doença, reduzindo o estigma e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida e da autoestima. Ainda assim, o acompanhamento psicológico pós-cirúrgico continua sendo imprescindível para reduzir as inseguranças e facilitar a ressocialização.

Também do ponto de vista da saúde mental, a hanseníase pode ser considerada uma doença negligenciada. Ainda há um longo caminho a ser percorrido para melhorar a atenção à saúde mental das pessoas afetadas pela hanseníase no Brasil e no Mundo.


Referências Biliográficas

  1. Leite SCC, Caldeira AP. Therapeutic workshops and psychosocial rehabilitation for institutionalised leprosy patients. Cienc Saude Coletiva. Jun 2015;20(6):1835–42.

  2. Mhasawade BC. Leprosy--a case for mental health care. Lepr India. Apr 1983;55(2):310–3.

  3. Kumar JH, Verghese A. Psychiatric disturbances among leprosy patients. An epidemiological study. Int J Lepr Mycobact Dis Off Organ Int Lepr Assoc. Dec 1980;48(4):431–4.

  4. Rocha-Leite CI, Borges-Oliveira R, Araújo-de-Freitas L, Machado PRL, Quarantini LC. Mental disorders in leprosy: an underdiagnosed and untreated population. J Psychosom Res. May 2014;76(5):422–5.

  5. Chatterjee RN, Nandi DN, Banerjee G, Sen B, Mukherjee A, Banerjee G. The social and psychological correlates of leprosy. Indian J Psychiatry. Oct 1989;31(4):315–8.

  6. Gómez LJ, van Wijk R, van Selm L, Rivera A, Barbosa MC, Parisi S, et al. Stigma, participation restriction and mental distress in patients affected by leprosy, cutaneous leishmaniasis and Chagas disease: a pilot study in two co-endemic regions of eastern Colombia. Trans R Soc Trop Med Hyg. 13 de fevereiro de 2020.

  7. Finotti RFC, Andrade ACS, Souza DPO. Common mental disorders and associated factors among people with leprosy: cross-sectional analysis in Cuiabá, Brazil, 2018. Transtornos mentais comuns e fatores associados entre pessoas com hanseníase: análise transversal em Cuiabá, 2018. Epidemiol Serv Saude. 2020;29(4):e2019279.

  8. Singh GP. Psychosocial aspects of Hansen’s disease (leprosy). Indian Dermatol Online J. Sep 2012;3(3):166–70.

  9. Shen J, Liu M, Zhou M, Li W. Causes of death among active leprosy patients in China. Int J Dermatol. Jan 2011;50(1):57–60.

  10. Ramanathan U, Malaviya GN, Jain N, Husain S. Psychosocial aspects of deformed leprosy patients undergoing surgical correction. Lepr Rev. Dec 1991;62(4):402–9..

  11. van ‘t Noordende AT, Kuiper H, Ramos AN, Mieras LF, Barbosa JC, Pessoa SMF, et al. Towards a toolkit for cross-neglected tropical disease morbidity and disability assessment. Int Health. 2016 Mar 1;8(suppl_1):i71–81.

  12. Cunha MADS, Antunes DE, Da Silveira RWM, Goulart IMB. Application of the SRQ20 and the protocol of psychological assessment in patients with leprosy in a Reference Centre in Brazil. Lepr Rev. Sep 2015;86(3):229–39.