Hanseníase em tempos de pandemia por Covid-19
por Izabela Feres de Oliveira, Kaicki Teofilo da Silva e Patricia D. Deps.
A hanseníase é uma doença infecto-contagiosa crônica cujo principal agente etiológico é o Mycobacterium leprae, parasita intracelular que afeta predominantemente os nervos periféricos, a pele, as superfícies mucosas do trato respiratório superior e os olhos. É transmitida principalmente através de gotículas oriundas do trato respiratório superior ou da boca, durante contato próximo e prolongado com pessoas não tratadas (1). A hanseníase é endêmica no Brasil, e entre os anos de 2014 e 2018 foram identificados 140.578 novos casos da doença no país (2).
A doença nomeada de Covid-19 é uma síndrome respiratória aguda causada pelo Coronavírus identificado recentemente, SARS-CoV-2, cuja transmissão entre humanos ocorre principalmente pelo contato direto com uma pessoa infectada, através da exposição a partículas ou aerossóis provenientes de secreções respiratórias (3). No Brasil, até o início de junho de 2020, havia mais de 2.070.000 casos de Covid-19 confirmados (4).
As interações fisiopatológicas e imunológicas entre o M. leprae e o SARS-CoV-2 ainda não foram elucidadas, porém ambas podem compartilhar alguns sinais clínicos. O M. leprae ao invadir a mucosa nasal do indivíduo, pode comprometer o bulbo olfatório, nos estágios iniciais da doença, provocando disfunções olfativas e redução do volume do bulbo olfatório, desencadeando hiposmia ou anosmia (5). Anosmia foi sinal clínico relatado por 45,4% dos pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 em inquérito sorológico realizado no Brasil (6). Sendo assim, anosmia isoladamente, poderia levar a confusão no diagnóstico inicial das duas doenças.
Há poucas informações a respeito da infecção simultânea dessas doenças, entretanto a relação da Covid-19 com quadros reacionais da hanseníase tem sido discutida. As reações hansênicas (RHs) são eventos imunológicos que afetam uma boa parte das pessoas com hanseníase, e uma potencial longa lista de fatores desencadeadores, inclusive infecções. As RHs são subdivididas em reações tipo 1 e reações tipo 2, sendo o quadro mais comum, o eritema nodoso hansênico (ENH). A Covid-19 pode desencadear quadro inflamatório grave, o que em tese, poderia aumentar o risco do paciente desenvolver um tipo de RH pela grande quantidade de citocinas envolvida na patogênese dos dois quadros clínicos, como TNF-alfa (7). Sendo assim, existe a expectativa de que pessoas afetadas pela hanseníase infectadas com o SARS-CoV-2 desenvolvam mais episódios de RH (7).
Há consenso de que a poliquimioterapia para hanseníase não deve ser suspensa no caso de coinfecção. Entretanto, avaliação caso a caso deve ser feito para as duas principais drogas utilizadas para o tratamento das RHs. A talidomida é um medicamento imunomodulador que inibe a expressão de TNF-α e IFN-γ, afetando a atividade pró-inflamatória e interfere na resposta imunológica do ENH. Em alguns estudos, a talidomida quando associada com corticosteroides sistêmicos, parece ser benéfica no tratamento da pneumonia causada pela Covid-19 (7).
Embora contraditório, o tratamento com a talidomida para eritema nodoso hansênico (ENH), não deve ser suspenso, com risco elevado de exacerbação súbita e desenvolvimento de quadros graves, que requerem hospitalização. Neste caso, aumentando o risco de infecção do Covid-19, sobrecarregando o sistema público de saúde (8).
Alguns trabalhos ressaltam o risco da imunossupressão com corticosteroides sistêmicos usados no tratamento das RHs, correlacionando-os com o aumento do risco de infecção pelo SARS-CoV2 (7). Parece promissor o uso de um inibidor seletivo da fosfodiesterase-4 (Apremilast®) associado a baixas doses de corticosteroides sistêmicos, o que aponta para uma forma mais segura de tratamento do ENH, sem desencadear imunossupressão (9).
A Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH) e a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) publicaram guias de condutas para hanseníase durante a pandemia por Covid-19 (9,10). A SBH orienta ponderação no uso de medicações imunossupressoras no curso da hanseníase, sugere uma avaliação risco-benefício, se possível adequar a posologia das drogas ou até mesmo suspender o tratamento durante o surto reacional, respeitando a individualidade de cada paciente (10).
Informações sobre a coinfecção hanseníase e Covid-19 são escassas no momento, entretanto, deve-se manter a todas as medidas de prevenção para que as pessoas afligidas pela hanseníase não desenvolvam Covid-19. Desta forma, ambas as sociedades médicas, SBD e SBH, enfatizam que a poliquimioterapia (PQT) usada no tratamento da hanseníase seja continuada, para tanto, pode se fazer necessário a dispensa das cartelas de PQT suficientes para dois ou três meses com o intuito de evitar que os pacientes corram o risco de se infectarem com o SARS-CoV2 ao se dirigirem aos serviços de saúde (9,11). Neste mesmo contexto, a SBH enfatiza que as consultas eletivas sejam reduzidas ao mínimo necessário, e quando estritamente essencial que seja feita com o uso de equipamentos de proteção individual, e alerta que sob nenhuma hipótese a prestação de serviço de atendimento médico aos pacientes seja interrompida (9).
A orientação operacional provisória para o momento da pandemia de Covid-19 é para a manutenção de serviços essenciais de saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Afirma que atrasos prolongados no fornecimento de intervenções podem levar ao aumento de novas infecções e de recidivas, principalmente em áreas endêmicas de hanseníase. Embora ainda sem informações oficiais, há evidências que os serviços destinados ao controle de doenças tropicais negligenciadas (DTN), como a hanseníase, foram afetados pela pandemia em quase todos os países endêmicos. No caso da hanseníase, pode-se dizer que houve uma redução do número de pacientes atendidos para avaliação clínica, tratamento e acompanhamento, levando a interrupções nas vias do atendimento médico. A OMS também relata atrasos na transferência de amostras para diagnóstico confirmatório da hanseníase, além de interrupções nas cadeias de fabricação e distribuição de medicamentos e de suprimentos para diagnósticos de DTN (12).
A OMS recomenda que as intervenções comunitárias com DTN sejam adiadas, incluindo tratamento em massa, pesquisas comunitárias e busca ativa de casos. Ela recomenda que os programas mantenham o diagnóstico e serviços de gestão para os casos como a hanseníase e para complicações de outras DTN (10).
Referências bibliográficas
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