Hanseníase em tempos de pandemia por Covid-19

por Izabela Feres de Oliveira, Kaicki Teofilo da Silva e Patricia D. Deps.

Departamento de Medicina SocialPrograma de Pós-Graduação em Doenças InfecciosasUniversidade Federal do Espírito Santo
10/08/2020

A hanseníase é uma doença infecto-contagiosa crônica cujo principal agente etiológico é o Mycobacterium leprae, parasita intracelular que afeta predominantemente os nervos periféricos, a pele, as superfícies mucosas do trato respiratório superior e os olhos. É transmitida principalmente através de gotículas oriundas do trato respiratório superior ou da boca, durante contato próximo e prolongado com pessoas não tratadas (1). A hanseníase é endêmica no Brasil, e entre os anos de 2014 e 2018 foram identificados 140.578 novos casos da doença no país (2).

A doença nomeada de Covid-19 é uma síndrome respiratória aguda causada pelo Coronavírus identificado recentemente, SARS-CoV-2, cuja transmissão entre humanos ocorre principalmente pelo contato direto com uma pessoa infectada, através da exposição a partículas ou aerossóis provenientes de secreções respiratórias (3). No Brasil, até o início de junho de 2020, havia mais de 2.070.000 casos de Covid-19 confirmados (4).

As interações fisiopatológicas e imunológicas entre o M. leprae e o SARS-CoV-2 ainda não foram elucidadas, porém ambas podem compartilhar alguns sinais clínicos. O M. leprae ao invadir a mucosa nasal do indivíduo, pode comprometer o bulbo olfatório, nos estágios iniciais da doença, provocando disfunções olfativas e redução do volume do bulbo olfatório, desencadeando hiposmia ou anosmia (5). Anosmia foi sinal clínico relatado por 45,4% dos pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 em inquérito sorológico realizado no Brasil (6). Sendo assim, anosmia isoladamente, poderia levar a confusão no diagnóstico inicial das duas doenças.

Há poucas informações a respeito da infecção simultânea dessas doenças, entretanto a relação da Covid-19 com quadros reacionais da hanseníase tem sido discutida. As reações hansênicas (RHs) são eventos imunológicos que afetam uma boa parte das pessoas com hanseníase, e uma potencial longa lista de fatores desencadeadores, inclusive infecções. As RHs são subdivididas em reações tipo 1 e reações tipo 2, sendo o quadro mais comum, o eritema nodoso hansênico (ENH). A Covid-19 pode desencadear quadro inflamatório grave, o que em tese, poderia aumentar o risco do paciente desenvolver um tipo de RH pela grande quantidade de citocinas envolvida na patogênese dos dois quadros clínicos, como TNF-alfa (7). Sendo assim, existe a expectativa de que pessoas afetadas pela hanseníase infectadas com o SARS-CoV-2 desenvolvam mais episódios de RH (7).

Há consenso de que a poliquimioterapia para hanseníase não deve ser suspensa no caso de coinfecção. Entretanto, avaliação caso a caso deve ser feito para as duas principais drogas utilizadas para o tratamento das RHs. A talidomida é um medicamento imunomodulador que inibe a expressão de TNF-α e IFN-γ, afetando a atividade pró-inflamatória e interfere na resposta imunológica do ENH. Em alguns estudos, a talidomida quando associada com corticosteroides sistêmicos, parece ser benéfica no tratamento da pneumonia causada pela Covid-19 (7).

Embora contraditório, o tratamento com a talidomida para eritema nodoso hansênico (ENH), não deve ser suspenso, com risco elevado de exacerbação súbita e desenvolvimento de quadros graves, que requerem hospitalização. Neste caso, aumentando o risco de infecção do Covid-19, sobrecarregando o sistema público de saúde (8).

Alguns trabalhos ressaltam o risco da imunossupressão com corticosteroides sistêmicos usados no tratamento das RHs, correlacionando-os com o aumento do risco de infecção pelo SARS-CoV2 (7). Parece promissor o uso de um inibidor seletivo da fosfodiesterase-4 (Apremilast®) associado a baixas doses de corticosteroides sistêmicos, o que aponta para uma forma mais segura de tratamento do ENH, sem desencadear imunossupressão (9).

A Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH) e a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) publicaram guias de condutas para hanseníase durante a pandemia por Covid-19 (9,10). A SBH orienta ponderação no uso de medicações imunossupressoras no curso da hanseníase, sugere uma avaliação risco-benefício, se possível adequar a posologia das drogas ou até mesmo suspender o tratamento durante o surto reacional, respeitando a individualidade de cada paciente (10).

Informações sobre a coinfecção hanseníase e Covid-19 são escassas no momento, entretanto, deve-se manter a todas as medidas de prevenção para que as pessoas afligidas pela hanseníase não desenvolvam Covid-19. Desta forma, ambas as sociedades médicas, SBD e SBH, enfatizam que a poliquimioterapia (PQT) usada no tratamento da hanseníase seja continuada, para tanto, pode se fazer necessário a dispensa das cartelas de PQT suficientes para dois ou três meses com o intuito de evitar que os pacientes corram o risco de se infectarem com o SARS-CoV2 ao se dirigirem aos serviços de saúde (9,11). Neste mesmo contexto, a SBH enfatiza que as consultas eletivas sejam reduzidas ao mínimo necessário, e quando estritamente essencial que seja feita com o uso de equipamentos de proteção individual, e alerta que sob nenhuma hipótese a prestação de serviço de atendimento médico aos pacientes seja interrompida (9).

A orientação operacional provisória para o momento da pandemia de Covid-19 é para a manutenção de serviços essenciais de saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Afirma que atrasos prolongados no fornecimento de intervenções podem levar ao aumento de novas infecções e de recidivas, principalmente em áreas endêmicas de hanseníase. Embora ainda sem informações oficiais, há evidências que os serviços destinados ao controle de doenças tropicais negligenciadas (DTN), como a hanseníase, foram afetados pela pandemia em quase todos os países endêmicos. No caso da hanseníase, pode-se dizer que houve uma redução do número de pacientes atendidos para avaliação clínica, tratamento e acompanhamento, levando a interrupções nas vias do atendimento médico. A OMS também relata atrasos na transferência de amostras para diagnóstico confirmatório da hanseníase, além de interrupções nas cadeias de fabricação e distribuição de medicamentos e de suprimentos para diagnósticos de DTN (12).

A OMS recomenda que as intervenções comunitárias com DTN sejam adiadas, incluindo tratamento em massa, pesquisas comunitárias e busca ativa de casos. Ela recomenda que os programas mantenham o diagnóstico e serviços de gestão para os casos como a hanseníase e para complicações de outras DTN (10).

Referências bibliográficas

  1. WHO, Leprosy (Hansen’s disease). World Health Organization. Genebra 2020a. Disponível em: <https://www.who.int/health-topics/leprosy#tab=tab_1>. Acesso em 5 de julho de 2020.

  2. Brasil, Boletim Epidemiológico – Hanseníase. Ministério da saúde, Brasília 2020a. Disponível em <https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/janeiro/31/Boletim-hanseniase-2020-web.pdf> Acesso em 11 de Julho de 2020.

  3. Shereen, M. A.; Khan, S.; Kazmi, A.; Bashir, N.; Siddique, R. COVID-19 infection: Origin, transmission, and characteristics of human coronaviruses. J. Adv. Res., v. 24, 91-98, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jare.2020.03.005.

  4. Brasil, Coronavírus COVID-19, Últimas notícias. Ministério da Saúde,Ministério da Saúde, Brasília 2020b. Disponível em <https://coronavirus.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos>. Acesso em 22 de Julho de 2020.

  5. Veyseller B, Aksoy F, Yildirim YS, et al.2012. Olfactory dysfunction and olfactory bulb volume reduction in patients with leprosy. Indian J Otolaryngol Head Neck Surg. 64(3):261-5.

  6. Shereen, M. A.; Khan, S.; Kazmi, A.; Bashir, N.; Siddique, R. COVID-19 infection: Origin, transmission, and characteristics of human coronaviruses. J. Adv. Res., v. 24, 91-98, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jare.2020.03.005.

  7. Antunes, D. A.; Goulart, I.M.B; Goulart, L. R. Will cases of leprosy reaction increase with COVID-19 infection?. Plos Neglected Tropical Diseases. 17 de julho de 2020. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0008460

  8. SBD, Sociedade Brasileira de Dermatologia. The Fight Against COVID-19: Brazilian Society of Dermatology emphasizes the importance of patients and dermatologists following the Ministry of Health protocol for leprosy treatment. 23 de março 2020. Disponível em: < https://www.sbd.org.br/noticias/combate-a-covid-sbd-reforca-importancia-de-pacientes-e-dermatologistas-seguirem-protocolo-do-ms-para-tratamento-da-hanseniase/ > Acesso em 04 de julho de 2020.

  9. Abdelmaksoud, A; Gupta, S K. Management of Leprosy Patients in the Era of COVID19. 22 maio 2020. Dermatologic Therapy. DOI: https://doi.org/10.1111/dth.13631

  10. SBH, Sociedade Brasileira de Hansenologia, Orientações aos médicos da sociedade brasileira de hansenologia (SBH) sobre a possibilidade de coinfecção hanseníase e COVID-19. Brasil 2020. Disponível em <http://www.sbhansenologia.org.br/noticia/orientacoes-aos-medicos-da-sociedade-brasileira-de-hansenologia-sobre-a-possibilidade-de-coinfeccao-hanseniase-e-covid-19> Acesso em 23 de Julho de 2020.

  11. SBH, Sociedade Brasileira de dermatologia. Orientação para pessoas atingidas pela Hanseníase durante a Pandemia COVID-19. Abril de 2020. Disponível em <http://www.sbhansenologia.org.br/release/orientacoes-para-pessoas-atingidas-pela-hanseniase-durante-a-pandemia-covid-19>. Acesso em 03 de julho 2020.

  12. WHO, Maintaining essential health services: operational guidance for the COVID-19 Context. World Health Organization. Genebra, 2020b. Disponível em: <https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332240/WHO-2019-nCoV-essential_health_services-2020.2-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y> . Acesso em: 8 de julho de 2020.