Funcionalidade e hanseníase: avaliação de componentes da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF).

por Marcos Túlio Raposo,

Departamento de Saúde I. Curso de Fisioterapia, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Jequié-Bahia-Brasil.

e Ana Virgínia de Queiroz Caminha.

Departamento de Saúde I. Curso de Fisioterapia, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Jequié-Bahia-Brasil.
10/08/2020

No ano de 2018 foram diagnosticados 208.641 casos novos de hanseníase no mundo (taxa de detecção de casos novos 2,74/100.000 hab.), dos quais, 11.323 (5,43%) com incapacidades graves, classificadas como grau de incapacidade física 2 (GIF2). No mesmo ano, a taxa de casos novos com GIF2 por milhão de hab. foi de 1,5 (1). No Brasil, foram 28.660 casos novos (taxa de detecção de casos novos 13,7/100.000 hab.), sendo 2.109 (7,35%) com GIF2, perfazendo uma taxa de 10,08 casos com GIF2 por milhão de hab. (2).

Por ser uma enfermidade negligenciada, que compromete nervos periféricos e pele, as incapacidades físicas são complicações frequentes, indicadoras de diagnóstico tardio, e que podem determinar repercussões funcionais, psicológicas, emocionais e sociais.

Tomando-se como referência os indicadores epidemiológicos adotados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), verifica-se que a condição epidemiológica para a hanseníase no Brasil é de alta endemicidade (3). Em relação aos dados globais, especialmente quando se verifica a alta proporção de GIF2 (decorrentes da doença) entre a população geral, torna-se evidente a gravidade das deficiências e deformidades (2), assim como os dados demonstram as repercussões que as incapacidades poderão determinar na vida da pessoa, inclusive após a conclusão da poliquimioterapia (4).

A partir do modelo adotado pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), o entendimento de “funcionalidade” pressupõe a avaliação ampliada de uma pessoa, em vários domínios, considerando-se as funções e estruturas do corpo, atividades, participação, fatores ambientais e fatores pessoais (5). No entanto, a funcionalidade resulta da interação de diversos fatores contextuais, podendo ser fortemente determinada pelo estigma social e pela discriminação (6), considerados como fatores ambientais (5).

Sob esta perspectiva ampliada, a respeito das incapacidades, a Estratégia Global para Hanseníase 2016-2020 estabeleceu, entre suas metas: (i) que nenhum menor de 15 anos seja diagnosticado com GIF2; (ii) a redução para menos de um caso de GIF2 por milhão de habitantes; e (iii) que em nenhum país do mundo haja leis ou legislação que permita discriminação em decorrência da hanseníase (7). No âmbito nacional, alinhado à Estratégia Global, o Ministério da Saúde propõe, até 2022: (i) reduzir em 23% o total de crianças com GIF2, passando de 39 em 2018, para 30 em 2022; (ii) reduzir em 12% a taxa de GIF2 por milhão de habitantes, que em 2018 foi de 10,08/1 milhão de hab., para 8,83/1 milhão de hab., em 2022; e (iii) implantar canais de registro de práticas discriminatórias contra as pessoas acometidas pela hanseníase e seus familiares (8).

Com o objetivo de mensurar o status das incapacidades físicas, os programas de hanseníase as classificam segundo o padrão estabelecido pela OMS. Com este instrumento são avaliados os componentes “Funções do corpo” e “Estruturas do corpo”. Nele são consideradas estruturas como olhos, mãos e pés, numa gradação de 0 a 2, na qual 0 indica ausência de incapacidades físicas decorrentes da hanseníase, 1 equivale a diminuição de sensibilidade protetora ou discreta diminuição de força, sem deformidades visíveis, e 2 indica presença de deformidades visíveis (9).

Para ampliar o escopo de instrumentos avaliativos, a Escala SALSA – Screening of Activity Limitation and Safety Awareness – é um instrumento validado em vários idiomas, fundamentada na CIF, e destinada a mensurar o componente “Atividade” (10). Por meio desta ferramenta a limitação de atividade e a consciência de risco são estimadas numa perspectiva individual, categorizada dentro de um escore de 10 a 80 pontos, desde “ausência de limitação de atividade” até “limitação muito severa” (11).

Considerando uma situação na qual a funcionalidade é analisada numa perspectiva social, diferentemente da “atividade” que é individual, o componente “Participação” da CIF é aferido pela Escala de Participação Social – Participation scale. Também validada para o português falado no Brasil, propicia mensurar a restrição à participação social em situações nas quais a pessoa avaliada estabelece comparação entre ela e uma outra escolhida por ela, com características semelhantes às suas em todos os aspectos, exceto por não apresentar a doença ou deficiência e, na impossibilidade de indicar esta pessoa, deve-se utilizar uma situação de um indivíduo hipotético, com as características descritas anteriormente. O escore pode variar de 0 a 90 pontos, numa categorização desde “sem restrição significativa” ate “restrição extrema” (11, 12).

A CIF reconhece que deficiências podem resultar em perda da socialização, porém, em outra direção, um problema de desempenho ou capacidade, mesmo na ausência de deficiência, pode ser decorrente de um contexto social comprometido, de tal forma que a discriminação e/ou o estigma podem afetar a funcionalidade (5). Com vista à aproximação de uma abordagem multidimensional segundo o modelo de funcionalidade e de incapacidade da CIF, sugere-se a incorporação da avaliação quantitativa do componente “fatores ambientais”. Para tanto, uma escala genérica para avaliação de estigma - Explanatory Model Interview Catalogue – EMIC Stigma Scale (13) passou pelo processo de adaptação transcultural para ser utilizada com pessoas atingidas pela hanseníase no Brasil (14, 15). A escala é composta por 15 itens, cujo resultado alcança valor total entre 0 e 45 pontos, porém sem estabelecimento de categorização padronizada para o resultado, tendo-se para sua interpretação a compreensão de que quanto mais alto o escore atingido, mais alto o nível de estigma percebido e autoestigma (16).

Considerando-se a amplitude de comprometimentos que a hanseníase pode determinar na vida uma pessoa e sob a guia do modelo de funcionalidade e de incapacidade adotado pela OMS, os instrumentos acima descritos correspondem a um consolidado resumido dentre ferramentas aplicáveis à condição hanseníase, nos diferentes níveis de complexidade, especialmente no contexto da atenção primária, que instrumentalizam os profissionais inseridos nos diversos pontos da rede de atenção. Destaca-se que o acompanhamento oportuno de casos envolve o monitoramento dos componentes da funcionalidade desde o momento do estabelecimento do diagnóstico, durante o curso da poliquimioterapia (PQT) e o seguimento após a conclusão da PQT (17).

Referências

  1. World Health Organization (WHO). Global leprosy update, 2018: moving towards a leprosy-free world. Wkly Epidemiol Rec. 2019 Aug30; 94(35/36):389-412.

  2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico – Hanseníase 2020. Brasília. 2020.

  3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes para vigilâcia, atenção e eliminação da hanseníase como problema de saúde pública. Brasília, 2016.

  4. Reis, Martha Cerqueira et al. Incapacidades físicas em pessoas que concluíram a poliquimioterapia para hanseníase em Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Acta Fisiatr. 2018;25(2):78-85

  5. World Health Organization. International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF). Genève: WHO, 2001

  6. van Brakel, W.H.; Sihombing, B.; Djarir, H. Disability in people affected by leprosy: the role of impairment, activity, social participation, stigma and discrimination. Glob Health Action, v.5, n.1, p.183–194, 2012.

  7. Organização Mundial da Saúde. Estratégia Global para a Hanseníase 2016-2020: aceleração rumo a um mundo sem hanseníase. Nova Deli: OMS, 2016.

  8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Estratégia Nacional para Enfrentamento da Hanseníase 2019-2022. Brasília, 2019.

  9. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância e Doenças Transmissíveis. Guia prático sobre a hanseníase. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017.

  10. Salsa Collaborative Study Group, Ebenso J, Fuzikawa P, Melchior H, Wexler R, Piefer A, et al. The development of a short questionnaire for screening activity limitation and safety awareness (SALSA) in clients affected by leprosy or diabetes. Disabil Rehabil. 2007; 29(9):689±700.

  11. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância a Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de Prevenção de Incapacidades. Editora MS. Brasília, 2008.

  12. Van Brakel, W.H. et al. The Participation Scale: measuring a key concept in public health. Disabil Rehabil, v.28, n.4, p.193-203, 2006.

  13. Weiss M.G. et al. The Explanatory Model Interview Catalogue (EMIC): contribution to cross-cultural research methods from a study of leprosy and mental health. Br J Psychiatry. 1992;160:819-30.

  14. Morgado, F.F.R et al. Adaptação transcultural da EMIC Stigma Scale para pessoas com hanseníase no Brasil. Rev Saude Publica. 2017;51:80

  15. Oliveira, H.X. Adaptação transcultural das escalas de estigma Explanatory Model Interview Catalogue (EMIC) na perspectiva de pessoas acometidas pela hanseníase e da comunidade para o contexto brasileiro [Dissertação]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2018.

  16. Oliveira H.X. et al. Guia de Aplicação das Escalas de Estigma (EMIC). Universidade Federal do Ceará. 2019

  17. Raposo MT et al. Grade 2 disabilities in leprosy patients from Brazil: Need for follow-up after completion of multidrug therapy. PLoS Negl Trop Dis. 2018.12(7):e0006645.