Preservação dos espaços de memória relacionados à hanseníase: o direito ao patrimônio

por Sônia Rampim.

Socióloga, Especialista em Sociologia Rural e em Políticas Públicas de Proteção e Desenvolvimento Social. Mestre em Educação. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). ICOMOS Brasil.
19/08/2021
Hic manebimus optime ("Vamos ficar bem aqui")Foto: Artur Custódio - MORHAN.

A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 216, afirma o entendimento do conceito ampliado de patrimônio cultural quando destaca o direito à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essa construção, resultado de resistências de movimentos sociais do campo da cultura, ampara legalmente a necessidade de modificação de práticas de preservação calcadas na colonialidade do saber expressa, por tanto tempo, nas políticas de patrimônio.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

        I -  as formas de expressão;

        II -  os modos de criar, fazer e viver;

        III -  as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

        IV -  as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

        V -  os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

    § 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

    § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

    § 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

    § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

    § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Em que pese o esforço dessas atualizações de práticas pelos órgãos oficiais de preservação em direção à ampliação das narrativas e representatividade dos diferentes grupos sociais da sociedade brasileira, ainda permanece um arcabouço conceitual e prático que reforça as narrativas hegemônicas do Estado em direção à ideia de um passado comum, compartilhado por todos e que afirmam o patrimônio de certos grupos sociais representativos das classes dominantes. Assim, faz-se necessária a criação de estratégias, por parte dos grupos sociais que defendem o direito à memória e ao patrimônio cultural, no sentido de se organizarem e atuarem politicamente como sociedade civil, em direção à construção de políticas públicas abrangentes para a garantia desses direitos.

Os espaços relacionados à histórias e memórias das pessoas atingidas pela hanseníase fazem parte, portanto, de um conjunto de outros espaços que, durante muito tempo, não era considerado nos processos de preservação do patrimônio cultural, que sempre estavam relacionados à comemoração da memória nacional e às narrativas oficiais do passado.

Não havia lugar para o que se relacionasse à tragédia, à opressão, à dor – presentes na história. Com a ampliação do conceito de patrimônio cultural no Brasil, expresso, como supracitado, no artigo 216 da constituição Federal de 1988 e com lutas de movimentos sociais , amplia-se aqui e  no mundo a proteção a sítios ligados a esses aspectos da história. Há um interesse crescente nos chamados “patrimônio da dor” e “patrimônio sensível” de populações e grupos sociais que tiveram suas narrativas invisibilizadas e sufocadas.

A Unesco - Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, reconhece, como patrimônio mundial, por exemplo: Hiroshima no Japão, o campo de concentração de Aushwitz, na Alemanha, Rolban Island, na África do Sul e Cais do Valongo 2017 no Rio de Janeiro - Brasil (local de chegada da diáspora africana - maior porto de pessoas escravizadas da América Latina). Esses sítios de história sensível despertam a memória de eventos traumáticos e dolorosos que revelam a história de violação dos direitos humanos.

No caso dos espaços relacionados à hanseníase, os valores não estão somente em seus aspectos históricos mas, também, em seu valores simbólicos que sintetizam a tragédia de políticas públicas de saúde equivocadas, que foram ao encontro de uma perspectiva higienista e de “limpeza” de problemas que, na verdade, foram problemas sociais de um processo de modernização avassalador no Brasil, que teve como consequência a exclusão social de grupos mais vulneráveis socialmente.

Garantir o uso desses espaços alinhado às histórias dessas pessoas dá um sentido de reparação, por parte do estado brasileiro – no sentido de que já foram reconhecidas como equivocadas as políticas públicas de saúde que tanto mal trouxeram a essas pessoas. 

Assim, é fundamental o exercício de práticas educativas que promovam a mobilização dos grupos sociais que habitam e se relacionam cotidianamente com esses espaços. É importante, aqui, firmar que as experiências educativas de valorização do patrimônio são mais efetivas quando integradas às diversas dimensões da vida das pessoas. Em outras palavras, devem fazer sentido e serem percebidas nas práticas cotidianas. No caso das ações educativas em prol da preservação e valorização do patrimônio cultural, em lugar de preservar lugares, edificações e objetos pelo seu valor em si mesmo, em um processo de reificação, é preciso associar continuamente os bens culturais e a vida cotidiana, como criação de símbolos e circulação de significados. 

Para a prática desse princípio, é fundamental o reconhecimento da dimensão afetiva do patrimônio. Segundo Meneses (2012), os valores afetivos do patrimônio estão no campo da constituição da autoimagem e da identidade dos grupos sociais e constituem-se das relações subjetivas que se estabelece com os bens. Assim, um desafio se coloca: o reconhecimento desses valores que, para o autor, não se confunde com a realização de pesquisas de opinião, mas trata-se de buscar compreender o universo das representações e do imaginário social.

Portanto, somente com verdadeiros processos de escuta de diferentes narrativas sobre o patrimônio cultural é possível iniciar o acesso às valorações que se revelam por argumentos diferentes que emanam de agentes sociais também diferentes.

Uma ferramenta que contribui com essa perspectiva são os inventários participativos. Trata-se de um instrumento de mobilização social que preconiza o protagonismo dos sujeitos na identificação do seu patrimônio cultural. 

Quais são as referências culturais dos espaços relacionados à hanseníase? Que lugares são importantes para essas pessoas que se relacionam com eles diariamente? Quais formas de expressão são particulares a esse universo e entendidas por todos que vivenciam esses territórios? Quais objetos remetem à memória e identidade desses grupos? São questões que só podem ser respondidas pelos detentores desse patrimônio, pois são eles que possuem essa relação afetiva com esses espaços. Afeto aqui é compreendido como uma ação, que certas situações e mesmo lugares, exercem sobre as pessoas , afetando-as, em direção a novas ações. É interessante lembrar aqui de Espinosa (2008) quando apresenta a noção de afeto e a relaciona com o poder de algo em modificar ações das pessoas que são afetadas:

“[...] por afeto compreendo as afecções do corpo pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. Explicação. Assim, quando podemos ser a causa adequada de algumas dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação [...]” (ESPINOSA, 2008, p.163).

Nesse sentido, o patrimônio se torna um elemento agregador e de resistência a modelos pretensamente hegemônicos de sociedade. É preciso entender tais práticas educativas como ação participante e de atuação política pois está inserida nos contextos sócio históricos de ação dos sujeitos e, muitas vezes, em realidades de conflitos que envolvem tomadas de decisão coletiva relacionadas ao desejo de futuro desses sujeitos em seus territórios e, num sentido mais amplo, de modelo de sociedade.

Patrimonializar os espaços relacionados à hanseníase, portanto, é uma oportunidade de mobilizar as pessoas não só para exercer o direito a memória e ao patrimônio mas, principalmente, para que políticas públicas equivocadas de saúde pública engendradas pelo estado, e que solaparam direitos humanos, não se repitam nunca mais.

No Portão de entrada da Colônia Santa Izabel, em Betim (MG) encontram-se os dizeres em latim: “Hic manebimus optime” ou “vamos ficar bem aqui”. Essa frase, que se tornou famosa como uma expressão de determinação, é relatada por Titus Livius em sua História Romana (Ab Urbe condita libri, V, 55), e atribuída a um centurião que, na conjuntura histórica do saque de Roma (cerca de 390/386 aC), ocorrido durante as invasões celtas da península italiana, teria pronunciado isso como uma exortação aos seus camaradas, influenciando indiretamente a decisão subsequente do Senado Romano de não abandonar a cidade. Ressignificando essa expressão hoje, o “vamos ficar bem aqui” pode apontar para uma continuidade dessas edificações, suportes materiais de memória, para lembrar sempre as história tão doloridas pelas quais passaram essas pessoas. 

Preservar e proteger oficialmente esses espaços, é portanto, urgente e necessário para que lembremos sempre que essas histórias invisibilizadas precisam ser contadas e recontadas para que a humanidade as conheça e não se esqueça dos efeitos de políticas públicas de saúde equivocadas que ceifaram, muitas vezes, a identidade e a vida dessas pessoas. Essas memórias pertencem a todos nós. Suas histórias são as nossas histórias e sua História é a nossa História.

“A necessidade de lembrar muitas vezes entra em conflito com a forte pressão para esquecer. Mesmo com as melhores intenções – como promover a reconciliação após eventos de extrema discórdia ao ‘virar a página’ – apagar o passado pode impedir que as novas gerações aprendam lições importantes, além de comprometer para sempre as oportunidades de construir um futuro pacífico.

Sem espaços seguros para lembrar e preservar essas memórias, as histórias dos mais velhos, sobreviventes de atrocidades, podem desaparecer depois que eles falecerem, as sociedades que superaram os conflitos podem deixar de buscar a justiça por medo de reabrir velhas feridas, e as famílias dos desaparecidos não poderão jamais achar as respostas.

Mas essas memórias pertencem a todos nós. Suas histórias são as nossas histórias e sua História é a nossa História. “

Revisoras do Corpo Editorial iH

 Patrícia D. Deps e Maria de Jesus Alencar.

Referências