A saga da eliminação da hanseníase como problema de saúde pública.
por Cláudio Guedes Salgado.
Enquanto eu me preparava para começar a escrever este artigo, recebi a informação do diagnóstico de mais um paciente de hanseníase no ambiente hospitalar. Um paciente de 60 anos, com “polineurite periférica”, sendo tratado como AVC isquêmico, diagnosticado com fenômeno de Lúcio, após um colega na interconsulta encontrar uma face com madarose e orelhas infiltradas.
A hanseníase foi oficialmente declarada “eliminada como problema de saúde pública” pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no ano 2000 (1). Em 1982, a OMS recomendou a implantação da poliquimioterapia (PQT), esquema usado até hoje, que contava com rifampicina mensal, dapsona e clofazimina diárias por 24 meses ou até negativar a baciloscopia para os multibacilares (MB), ou rifampicina mensal e dapsona diária por 6 meses para os paucibacilares (PB) (2). Enquanto os norte-americanos mantinham o seu esquema com doses diárias dessas drogas, a OMS indicou rifampicina em apenas uma dose mensal, mantendo as outras duas drogas de uso diário. Há relatos na literatura de que esta teria sido uma decisão baseada mais em custos financeiros do que em resultados científicos (3), e o próprio relatório que recomenda a PQT em 1982 se refere à rifampicina como uma droga de alto custo (2).
No início da década de 1980, eram mais de 5 milhões de “casos acumulados”, ou seja, pessoas que entraram nos sistemas de registro e não mais saíram. Com o advento da PQT e um período mínimo fixo de tratamento, as pessoas atingidas pela hanseníase poderiam receber “alta por cura” após usarem a PQT nos tempos definidos. Critério de cura? Nenhum. Nem a baciloscopia, com a definição de tratamento em 24 doses, nem a clínica, considerando que os pacientes com algum grau de incapacidade física recebiam alta, bem como aqueles com reações, entendidas apenas como resultado de algum desbalanço no sistema imunológico. Aliás, recebem alta até hoje com esquema fixo de 12 doses, apesar de diferenças importantes nos quadros reacionais em comparação com o esquema de 24 doses (4). O resultado disso? Ninguém sabe quantas pessoas existem no mundo vivendo com alguma incapacidade física causada pela hanseníase, nem quantos pacientes estão hoje com quadros reacionais após a “alta por cura”.
No início da década de 1990, com o sucesso aparente da PQT, a OMS definiu o ano 2000 como meta para a eliminação, e os países se comprometeram a eliminar, ou seja, chegar a menos de 1 caso para cada 10 mil habitantes (5). Com a realização sistemática de treinamentos mundo afora, passamos de quase 600 mil casos novos por ano em 1991 para mais de 800 mil em 1998, maior patamar já atingido em um ano, apenas 2 anos antes da meta da eliminação, mantida pela visão da prevalência (6), que estava em diminuição contínua desde o início da década de 1990, com tratamento por tempo fixo, “alta por cura” mesmo para pacientes com sequelas ou reações e “limpeza” dos registros por faltas ou abandonos.
Em 2001, os dois únicos grandes países que não eliminaram a hanseníase como problema de saúde pública foram a Índia e o Brasil. Mas teriam uma segunda chance, o ano de 2005. Os números da Índia a partir de 2001 caem vertiginosamente, ano a ano. Desde pelo menos 1993, a Índia manteve a detecção de mais de 400 mil casos novos todos os anos. Em 2001 foram 473.658 casos novos. Em 2005, apenas 161.457. Com a prevalência praticamente acompanhando a detecção de casos novos, a hanseníase estava, então, eliminada também na Índia. Ficou o Brasil como o único país no mundo a não alcançar a “eliminação”, mesmo tendo uma diminuição de 49.384 casos em 2004 para 38.410 casos novos em 2005 (7).
Vamos analisar um pouco toda essa situação e as variáveis envolvidas. O número de menos de um caso a cada 10.000 habitantes para eliminar a hanseníase como problema de saúde pública é um número mágico. Não há uma definição clara do que seria um problema de saúde pública para todos os países envolvidos e, consequentemente, nenhum experimento demonstrando que a saúde pública não seria mais impactada, uma vez que se atingisse este número. A OMS diz que a partir de menos de 1 caso a cada 10.000 habitantes, a doença teria uma tendência de “die out”, ou seja, a doença despareceria por si só (8). Para piorar um pouco mais a situação, a partir de 1998 a OMS indicou a redução da PQT de 24 para apenas 12 doses para os pacientes MB, também com pouquíssimos dados científicos de qualidade que pudessem dar suporte à mudança (9).
Conceitos comuns em outras doenças bacterianas também foram eliminados. Insuficiência terapêutica, falência terapêutica, persistência bacteriana, resistência medicamentosa, recidiva, possibilidade de existirem diferentes cepas circulando, nada disso foi relevante nas decisões tomadas para uma doença crônica, de longa duração, em que decisões tomadas em uma década implicam em problemas graves nas décadas seguintes, a médio e longo prazos.
Durante todo este período, avanços significativos foram obtidos pela ciência, em especial na sorologia e na biologia molecular, na eletroneuromiografia e na ultrassonografia. Todas essas técnicas podem aumentar significativamente a sensibilidade do único exame complementar disponibilizado hoje para as pessoas atingidas pela hanseníase e para o dia a dia dos profissionais de saúde, a baciloscopia. A utilização maciça e consistente dessas técnicas nas áreas silenciosas do planeta (10) testaria a hipótese defendida pela OMS de eliminação da hanseníase, que nunca foi realmente testada. Isso para falar apenas dos casos novos, tirando da discussão, como fizeram em todos os sistemas, as pessoas vivendo com incapacidades físicas causadas pela hanseníase, algo em torno de 2 a 3 milhões de pessoas. Se juntarmos esse número com os 4 milhões de casos de hanseníase a serem diagnosticados em 2020, previstos em 2015 (11), estaremos de volta ao quantitativo que tínhamos em 1980, ou seja, muito mais de 5 milhões de pessoas atingidas pela hanseníase.
Finalmente, se colocarmos na conta todos aqueles que estão em “alta por cura” com insuficiência terapêutica ou com falência terapêutica, seja por persistência bacilar, por resistência medicamentosa ou por problemas na metabolização dos medicamentos, contribuindo silenciosamente para a manutenção da endemia na comunidade, os números ficam ainda piores. É hora de olharmos seriamente para o problema, e de sairmos do marasmo que se tornou a endemia de hanseníase no mundo.
Referências bibliográficas
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