Reflexões sobre estigma institucional e hanseníase.
por Thauyra Oliveira, Lucas Delboni e Patrícia Deps
A Hanseníase é uma doença infecto contagiosa curável e, se diagnosticada e tratada precocemente, evita o desenvolvimento de incapacidades físicas (1). É fato conhecido o prejuízo que o estigma, em suas diversas nuances, traz para a vida das pessoas, principalmente dos mais vulneráveis, somado ao descaso pelo poder público e pela sociedade. É, portanto, justo envolver vários setores para solucionar o estigma e suas consequências, saindo do plano do teórico acadêmico para fatos concretos e atitudes práticas na sociedade - como mudança de comportamentos.
O preconceito contra brasileiros afetados pela hanseníase, segregados em hospitais colônias no século XX, perpetuou a dificuldade de ressocialização destas pessoas e o estigma da doença (1). Conjecturou-se, assim, um alto grau de limitação em atividades sociais, vergonha, problemas de relacionamentos e dificuldades no emprego entre as pessoas acometidas e seus familiares (2). O estigma, ao produzir interações desconfortáveis, dá continuidade ao ciclo da exclusão social e econômica, levando a perda do status do indivíduo e aumentando a vulnerabilidade de pessoas e de grupos (3). A estigmatização, contudo, não é homogeneamente vivida quando mais de um fator é contribuinte para a situação de vulnerabilidade, podendo variar entre os indivíduos de acordo com o gênero, etnia, condição social e cultural, resultando na “interseccionalidade de estigmas” (4).
Ao longo dos anos, imperou-se a necessidade de quantificar, de maneira objetiva, o estigma vivido pelas pessoas com hanseníase. Inspiradas em outras condições que também carregam consigo preconceito e estigma (HIV, dependência química e transtornos mentais), várias escalas foram desenvolvidas para mensurar não só a dimensão do estigma, mas também a participação social, caracterizar limitações funcionais e consciência de risco. A institucionalização do estigma, por sua vez, é uma vertente de ações, muitas vezes imperceptíveis, perpetradas pelos profissionais de saúde em sua rotina de trabalho. O comportamento médico, reproduzindo atos discriminatórios e estereotipados contra as pessoas afetadas pela hanseníase contribui para a perpetuação da exclusão social e da vulnerabilidade deste grupo. A relação médico-paciente oportuniza as ações de inclusão, e a boa prática médica deve ser uma ferramenta valorizada pelos programas de controle de hanseníase. Assim, desenvolver uma escala que avalie e mensure o estigma relacionado com a prática médica no Brasil, é um desafio para as escolas médicas e dos programas de controle da hanseníase. É um importante passo adicional para driblar a negligência e o tabu na prática médica.
O medo de ser reconhecido como pessoa afetada pela hanseníase pode estar relacionado com o estigma institucional, já que a percepção das ações discriminatórias pode ser sutil, mas certamente sentida pelo usuário. Este obstáculo impacta o diagnóstico precoce, impulsionando o aumento dos casos com incapacidades. A discriminação contra as pessoas afetadas pela hanseníase nos estabelecimentos de saúde pode ocorrer em vários níveis e em vários momentos. Dificuldades no acesso ao serviço de saúde para diagnóstico, tratamento, acompanhamento após término do tratamento, manejo das reações hansênicas e dos efeitos colaterais causados pela PQT, suspensão da busca ativa e falhas no acolhimento são exemplos de ações discriminatórias à nível institucional. Ainda há o descaso com a reabilitação, que gera evolução das incapacidades, e com o tratamento psicológico.
Cursos para treinamento são importantes para a abordagem deste tipo de estigma, preparando a equipe para o reconhecimento do problema, além de eliminar ações e linguagem discriminatórias. Fundamentos da medicina humanizada devem ser incentivados, em consonância com a exigência da boa prática médica.
Não obstante, a “Estratégia Global para a Hanseníase 2016-2020 - Aceleração rumo a um mundo sem hanseníase” (5), proposta pela Organização Mundial da Saúde, e a estratégia nacional pelo Ministério da Saúde do Brasil (6), assim como ações protagonizadas por Abrão Rotberg (1969) (7) e pelo MORHAN resultantes na Lei 9010/1995 (8), que trata da mudança da terminologia de “Lepra” para “Hanseníase”, são iniciativas de sucesso para a garantia dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais às pessoas atingidas pela hanseníase e seus familiares. A experiência brasileira de renomear a doença para hanseníase repercutiu em benefício ao combate à discriminação (9). No entanto, a experiência individual acerca da estigmatização reflete a influência de crenças culturais enraizadas na sociedade, não bastando somente a mudança de nome.
E, finalmente, o estigma como processo social dinâmico permite que ações discriminatórias em torno de um grupo possam ser erradicadas uma vez modificado o contexto gerador de diferenciação entre indivíduos. Tal mudança encontra alento na extensão ao acesso informacional e na educação da comunidade, assim como por meio de ações concretas de acolhimento multidisciplinar e no apoio dos diferentes atores sociais, dos familiares e amigos, inclusive os profissionais, que abrem as portas para o diagnóstico dos acometidos.
Referências
Deps P. The day I changed my name – Hansen’s disease and stigma. The discovery of the Colony of Itanhenga and Hansen’s Disease. Chapter 1. 1st Ed., 2019, Édition De Boccard, Paris, 164 pgs. 2019.
Dadun, Peters RMH, Van Brakel WH, Lusli M, Damayanti R, Bunders JFG, et al. Cultural validation of a new instrument to measure leprosy-related stigma: the SARI Stigma Scale. Lepr Rev. março de 2017;88(1):23–42.
Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saúde E Soc. março de 2014;23(1):157–66.
Hirata H. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Soc. junho de 2014;26(1):61–73.
Asia RO for S-E, Organization WH. Global Leprosy Strategy 2016–2020. Accelerating towards a leprosy-free world. Monitoring and Evaluation Guide [Internet]. World Health Organization. Regional Office for South-East Asia; 2017. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/254907
Consulta Pública no 1, Estratégia Nacional para o Enfrentamento da Hanseníase 2019-2022 [Internet]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/acesso-a-informacao/participacao-social/45319-consulta-publica-n-1-estrategia-nacional-para-o-enfrentamento-da-hanseniase-2019-2022
Rotberg A. “Hanseniasis,” the new official name for leprosy in Sao Paulo, Brazil. Dermatol Int. março de 1969;8(1):40–3.
Brasil. Lei Federal no 9.010 de 29 de março de 1995. Dispõe sobre a terminologia oficial relativa à hanseníase e dá outras providências. Brasília. (DF); 1995. [Internet]. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9010-29-marco-1995-348623-publicacaooriginal-1-pl.html
Deps P, Cruz A. Why we should stop using the word leprosy. Lancet Infect Dis. 1o de abril de 2020;20(4):e75–8.