Hanseníase: um agravo transmissível, mas o que se transmite mesmo?
por Cinira Magali Fortuna
A hanseníase é uma doença transmissível, causada pela bactéria Mycobacterium leprae, apresentando alta infectividade e baixa patogenicidade. Isso significa que muitas pessoas se infectam, mas poucas desenvolvem a doença. A transmissão se faz por vias aéreas e para se contrair a hanseníase, é necessário um contato longo com alguém doente e sem tratamento e também é necessária certa predisposição imunitária para o adoecimento (1). Podemos pensar, com base nessas informações que não se trata de uma doença fácil de se contrair. No entanto, a hanseníase persiste como um problema importante no Brasil sendo este o segundo país com maior número de casos no mundo. É comum a identificação da persistência da hanseníase em pessoas da rede de contatos domiciliares (familiares e pessoas que convivem próximas com alguém doente). Isso coloca para os profissionais de saúde o desafio de se identificar o mais precocemente possível os casos com buscas ativas nos territórios e o acompanhamento dessas pessoas ao longo de anos.
Outro aspecto importante a ressaltar é a distribuição territorial dos casos indicando relação entre a doença e a desigualdade social. Tem sido identificada como doença negligenciada em termos de investimentos em políticas públicas, em pesquisas, em tratamentos e difusão de informações, etc.
Recordados esses aspectos mais clássicos sobre a transmissão, gostaria de propor a seguinte reflexão: quando se transmite a hanseníase, o que se transmite?
Para além da bactéria, se transmite as memórias, os afetos e futuros.
Se transmite por contagio a memória de vizinhos, conhecidos, avós, pais, irmãos, irmãs, filhas, filhos, sobrinhos, sobrinhas, netas e netos, que por vezes habita o lugar do não dito, do impedido, do silenciado nas histórias familiares, comunitárias e profissionais. Essa posição de memória nem sempre é provocada e convocada na dimensão do cuidado. Pouco ou nada nos atentamos nos atendimentos para a escuta das histórias (ou do silencio que as memórias estão ocupando na rede de relações dessas pessoas) e assim não incluímos no cuidado estratégias de produção de narrativas sobre a experiência com a hanseníase. Por narrativas estamos propondo a composição de falas, escritas, desenhos, fotos, músicas ou outras expressões que não tenham um enquadramento à priori de certo, errado. Essas narrativas e composições de histórias, podem carregar, acalentar, amparar e transformar os sentidos e significados que a experiência dessas pessoas vai tecendo. Os profissionais que se permitiram escutar, certamente já ouviram dos usuários e familiares sobre o auto isolamento que se impuseram, sobre as dores de ser contagioso, sobre a vontade de sumir, sobre o não acreditar na transmissão da doença. O convite aqui é para que saiamos do lugar conhecido de logo contradizer as narrativas enunciadas, do uso da autoridade profissional para produzir desvalorização do discurso e que produz o medo, tecendo ameaças do tipo: “se não tratar vai ter sequelas”; “deixa disso, hanseníase tem cura”.
Sobre o contagio dos afetos, tomamos esses enquanto uma produção entre corpos, encontros que produzem potência, vitalidade e também que rebaixam essa potência. O corpo aqui é entendido como em Peixoto Junior (2) que o aborda baseando-se na abordagem espinoseana e deleuzeana: “Os corpos são forças que não se definem apenas por seus encontros e choques ao acaso, mas por relações”. Que tipo de relações estamos gerando e quais afetos estão sendo “transmitidos” quando do encontro entre trabalhadores de saúde e pessoas com hanseníase? Podem ser afetos que elevam a potência de viver, podem ser afetos de vivacidade e de intensidade vital. Também podem ser encontros que roubam potência, que geram corpos arriados e reduzidos a uma condição: condição de pessoa adoecida.
Os aprendizados que poderíamos tirar dessa ideia de transmissão de afetos na hanseníase é de que a definição da categoria “pessoa com hanseníase” pode subsumir toda a complexidade da vida e dos afetos que estão em espera para “vir-a-ser” nos encontros. Em geral operamos com a noção de corpo humano genérico em que as bactérias da hanseníase vão habitar e destruir, a transmissão será da bactéria, dos julgos e desconfortos que vem junto com ela. Esses encontros são tristes, retiram a potência, produzem desvitalidade.
Quanto a transmissão de futuros, as aberturas que temos é a de que são incontáveis as possibilidades de futuros que podemos vivenciar, mas que tentamos capturar numa binária trama: ou o doente contagiado pela bactéria se trata e se “cura”, (isso se seguir o que lhe é prescrito), ou o seu futuro é o da perda, da dor, do isolamento, das incapacidades. Propomos a possibilidade de operarmos com a abertura e transmissão de futuros não pré-determinados. Esses que são conjugados na multiplicidade, ao invés do “ou”, com o temo o “e”. Então, que se abram possibilidades para trabalhadores de saúde e pessoas com hanseníase e membros de redes de contato para que em encontros produzam e deixem passar as múltiplas memórias, afetos e futuros.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de vigilância em Saúde: Guia prático sobre hanseníase. Brasília/DF, 2017 Disponível Em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/novembro/22/Guia-Pratico-de-Hanseniase-WEB.pdf>. Acesso em: 22 de out. 2020.
BOIGNY, R. N. et al. Persistência da hanseníase em redes de convívio domiciliar: sobreposição de casos e vulnerabilidade em regiões endêmicas no Brasil. Cad. de Saúde Pública [online]. v. 35, n. 2, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00105318. Acesso em: 22 de out. 2020.
GOUVÊA, A. R. et al. Interrupção e abandono no tratamento da hanseníase. Rev. Curitiba, v. 3, n. 4, p. 10591-10603, 2020. Disponível em: <https://www.brazilianjournals.com/index.php/BJHR/article/view/15141>. Acesso em: 22 de out. 2020.
PEIXOTO JUNIOR, C. A. Permanecendo no próprio ser: a potência de corpos e afetos em Espinosa. Fractal, Rev. Psicol., v. 21, n. 2, p. 371-385, 2009. DOI: https://doi.org/10.1590/S1984-02922009000200012. Acesso em: 22 out. 2020.